DIA DA PAZ Fraternidade, fundamento e caminho para a paz por Armando Soares
DIA DA PAZ Fraternidade fundamento e caminho para a paz*
Caim mata Abel! |
No coração de cada homem e de cada mulher há uma aspiração
irreprimível de fraternidade, que nos impele à comunhão com os outros, como
irmãos que devemos acolher e abraçar. A fraternidade
é assim uma dimensão essencial do homem, conduzindo cada pessoa comportar-se
como um verdadeiro irmão e como uma verdadeira irmã. A fraternidade começa a
aprender-se habitualmente no seio da família sendo esta portanto, a fonte de
toda a fraternidade e o caminho primário para a paz.
Assim,
nos dinamismos da história, vemos semeada a vocação a formar uma comunidade
feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros. Contudo,
ainda hoje, esta vocação é muitas vezes negada nos factos, num mundo
caracterizado pela «globalização da indiferença» que lentamente nos faz
«habituar» ao sofrimento alheio, fechando-nos em nós mesmos.
Em
muitas partes do mundo, parece não conhecer tréguas a grave lesão dos direitos
humanos fundamentais, sobretudo dos direitos à vida e à liberdade de religião.
Exemplo
preocupante disso mesmo é o dramático fenómeno do tráfico de seres humanos,
sobre cuja vida e desespero especulam pessoas sem escrúpulos.
A
globalização, como afirmou Bento XVI, torna-nos vizinhos, mas não nos faz
irmãos (Caritas in Veritate, 19). As inúmeras situações de desigualdade,
pobreza e injustiça indicam não só uma profunda carência de fraternidade, mas
também a ausência duma cultura de solidariedade.
As
novas ideologias, caracterizadas por generalizado individualismo, egocentrismo
e consumismo materialista, debilitam os laços sociais, alimentando aquela
mentalidade do «descartável» que induz ao desprezo e abandono dos mais fracos,
daqueles que são considerados «inúteis».
As
próprias éticas contemporâneas mostramse incapazes de produzir autênticos
vínculos de fraternidade, porque uma fraternidade privada da referência a um
Pai comum como seu fundamento último não consegue subsistir. (Lumen Fidei, 54)
Uma
verdadeira fraternidade entre os homens supõe e exige uma paternidade
transcendente. A partir do reconhecimento desta paternidade, consolida-se a
fraternidade entre os homens. (Mensagem 2014, 1)
2.
Para compreender melhor esta vocação do homem à fraternidade e para reconhecerem
de forma mais adequada os obstáculos que se interpõem à sua realização e
identificar as vias para a superação dos mesmos, é fundamental deixar-se guiar
pelo conhecimento do desígnio de Deus, tal como se apresenta de forma egrégia
na Sagrada Escritura.
Segundo
a narração das origens, todos os homens provêm dos mesmos pais, de Adão e Eva,
casal criado por Deus à sua imagem e semelhança (Gn 1, 26), do qual nascem Caim
e Abel. Na história desta família primigénia, lemos a origem da sociedade, a
evolução das relações entre as pessoas e os povos.
Abel
é pastor, Caim agricultor. A sua identidade profunda e, conjuntamente, a sua
vocação é ser irmãos, embora na diversidade da sua actividade e cultura, da sua
maneira de se relacionarem com Deus e com a criação. Mas o assassinato de Abel
por Caim atesta, tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser irmãos. A
sua história (Gn 4, 1-16) põe em evidência o difícil dever, a que todos os
homens são chamados, de viver juntos, cuidando uns dos outros. Caim, não
aceitando a predilecção de Deus por Abel, que Lhe oferecia o melhor do seu
rebanho – mata Abel por inveja. Desta forma, recusa reconhecer-se irmão,
relacionar-se positivamente com ele, viver diante de Deus, assumindo as suas
responsabilidades de cuidar e proteger o outro. À pergunta com que Deus
interpela Caim – «onde está o teu irmão?» –, pedindo-lhe contas da sua acção,
responde: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?» (Gn 4, 9).
Depois – diz-nos o livro do Génesis –, «Caim afastou-se da presença do Senhor»
(4, 16).
É
preciso interrogar-se sobre os motivos profundos que induziram Caim a ignorar o
vínculo de fraternidade e, simultaneamente, o vínculo de reciprocidade e
comunhão que o ligavam ao seu irmão Abel. O próprio Deus denuncia e censura a
Caim a sua contiguidade com o mal: «o pecado deitar-se-á à tua porta» (Gn 4,
7). Mas Caim recusa opor-se ao mal, e decide igualmente «lançar-se sobre o
irmão» (Gn 4, 8),
desprezando o projecto de Deus. Deste modo, frustra a sua vocação original para
ser filho de Deus e viver a fraternidade.
A
narração de Caim e Abel ensina que a humanidade traz inscrita em si mesma uma
vocação à fraternidade, mas também a possibilidade dramática da sua traição. Disso
mesmo dá testemunho o egoísmo diário, que está na base de muitas guerras e
injustiças: na realidade, muitos homens e mulheres morrem pela mão de irmãos e
irmãs que não sabem reconhecer-se como tais, isto é, como seres feitos para a
reciprocidade, a comunhão e a doação. «E vós sois todos irmãos» (Mt 23, 8).
(Mensagem 2014, 2) * FONTE: Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz 2014.
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