Ser cristão não serve para nada ? por
JOÃO MIGUEL TAVARES*
Ilha da Madira. Marcelo conforta uma vítima do incêndio. |
Há
uma semana escrevi um texto sobre a ida de Marcelo Rebelo de Sousa à Madeira
onde escrevi duas coisas que irritaram uma impressionante
quantidade
de leitores e de amigos. A primeira coisa foi ter elogiado o comportamento do
Presidente da República relacionando-o com o fac to de ele ser cristão. Ou seja, atrevi-me a considerar que Marcelo
demonstrara no Funchal uma capacidade e um talento para consolar quem sofria
que tinha uma ligação com a fé que professava. A segunda coisa foi ter dito que
a empatia se encontrava retratada nos Evangelhos como em mais lado nenhum.
Inúmeris
leitores agnósticos e ateus ficaram ofendidos com as minhas palavras. Essa
ofensa tem um duplo efeito sobre mim: chateia-me e entristece-me, poque parece pura e simplesmente absurda. Vamos por
partes. Em primeiro lugar a questão dos Evangelhos. Eu não conheço todos os
livros sapienciais do planeta, mas dentro daquilo que é a literatura ocidental
ou a tradição dos monoteísmos não estou a ver que outro livro trate o amor ao
próximo e a empatia de forma mais radical do que os Evangelhos. Isto é uma é
uma opinião original para quem nunca leu a Bíblia. Não percebo por que é que um
ateu não pode ler os Evangelhos com a mesma abertura intelectual com que lê
Hamlet. Eu preciso de provar a existência do crânio de Yorick para apreciar as palavras de Shakepeare? Então
para quê viver obcecado com a adesão à realidade dos conteúdos da Bíblia?
Esqueça-se a existência de Deus e aprecie-se a
literatura. Não é preciso acreditar na ressurreição para admitir que a empatia se encontra
retratada nos Evangelhos como em nenhum outro lugar.
O
segundo ponto relacionado com a ligação que estabeleci entre o talento para
consolar os que sofrem e a adesão ao cristianismo pode ser menos intuitiva, mas
é fácil de compreender. Mais uma vez, não é necessário ter fé - basta achar que
a fé serve para alguma coisa. Infelizmente existe uma costela jacobina muito
desenvolvida que não só recusa a fé como recusa que ela possa ter qualquer
efeito sobre os seus crentes.
Enfim:
nem sempre. Peguemos no fundamentalismo islâmico. Qualquer pessoa crente ou
ateia, está disposta a admitir que jovens muçulmanos são radicalizados pela
acção de imãs extremistas, contra os quais há leis de expulsão. Nesse caso,
admite-se que a religião serve para criar radicais capazes de sacrificarem a
vida para matar os outros. Aquilo que já não se admite é que a religião possa
criar radicais capazes de sacrificarem a vida para salvar os outros.
Isto
não significa que um cristão seja moralmente superior a um ateu, ou que tenha
de ser melhor que ele a acudir aos mais fracos. Significa apenas que quando um
cristão tem a vocação e o empenho necessários, os Evangelhos são um excelente
instrumento para treinar a nobre arte do consolo. Quando dei o exemplo de
Marcelo, não disse que ele era melhor pessoa do que um ateu, até porque nesse
mesmo texto o apelidei de imprudente, impulsivo e infantil. O que disse, e
mantenho, é que o talento natural de Marcelo no contacto com os outros, em
conjunto com a sua formação cristã, o torna muito bom a consolar os que sofrem.
Não
é possível passarmos milhares e milhares de horas da nossa vida a estudar um
assunto e isso não ter qualquer efeito em nós. Não me parece que se trate de
uma questão de fé mas de lógica – até porque tanto pode dar para o bem como
para o mal. Mas se nós aceitamos o fanático, porque não podemos aceitar o
santo? * PÚBLICO|opinião|20.08.2016
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