ONU ANTÓNIO GUTERRES Discurso na ONU. Como Guterres quer melhorar o mund
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Discurso na ONU. Como Guterres quer melhorar o mundo
12/12/2016,
20:56
(COMENTÁRIO)
No dia em que jurou a Carta
das Nações Unidas em Nova Iorque, o português fez um
balanço terrível do mundo do
pós-Guerra Fria, e prometeu empenho pessoal para
ajudar a resolver os
conflitos
AFP/Getty Images
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Foi “um dia único”, como descreveu Marcelo Rebelo de
Sousa esta segunda-feira, ao
chegar ao edifício das Nações Unidas, em Nova Iorque,
onde António Guterres se preparava para jurar a Carta da ONU. Um
português ascendia ao topo do mundo, contra
todas as probabilidades. O
secretário-geral “designado”, que entrará em funções no início de janeiro, discursou pela primeira vez
na Assembleia Geral das
Nações Unidas, na qualidade de promotor da paz no mundo.
Uma tarefa difícil. Na conferência de imprensa que se seguiu, o ex-primeiro-ministro
português recordou que as guerras descritas nos livros de história que lia
na juventude tinham sempre vencedores e vencidos. “Hoje as guerras não têm
vencedores. Todos perdem”, disse Guterres. O mundo com que vai lidar é mais complexo, caótico
e imprevisível.
A história não acabou e o mundo está mais imprevisível
O mundo melhorou nos últimos
20 anos em muitos dos indicadores sociais e de desenvolvimento tecnológico,
mas tudo o resto mergulhou no caos: aprofundaram-se desigualdades,
instalaram-se desconfianças e, sobretudo, criou-se um fosso entre representantes
e representados. É este o retrato
do mundo que António Guterres começou por fazer no discurso
em que se dirigiu à Assembleia-geral das Nações Unidas. O secretário-geral
indigitado não evitou falar de fenómenos políticos atuais — embora sem nomear o Brexit ou
Donald Trump — como exemplos de consequências preocupantes do que aconteceu
desde o fim da Guerra Fria.
Os últimos 20 anos viram um
extraordinário progresso tecnológico, a economia global
cresceu, os indicadores
básicos sociais melhoraram, a proporção das pessoas a
viverem em absoluta pobreza
caiu dramaticamente. Mas a globalização e o progresso
tecnológico também
contribuíram para o aumento de desigualdades. Muita gente foi
deixada para trás, mesmo nos
países mais desenvolvidos, onde milhões de empregos
desapareceram e os novos
estão fora do alcance de muitas pessoas”
Antes deste momento, Guterres
tinha recordado o tempo em que tomou posse como
primeiro-ministro de Portugal
num “mundo cheio de otimismo” no final da Guerra
Fria: “Alguns descreviam este
momento como o fim da história (…) mas o fim da
Guerra Fria não
foi o fim da história. Pelo contrário, a história estava simplesmente
congelada em
alguns sítios“. E ela voltou quando
“a ordem mundial derreteu”, disse
Guterres, descrevendo o
surgimento posterior de “contradições e tensões
escondidas”, “novas guerras e
falta de transparência”, “impunidade”,
“imprevisibilidade”,
“violações de direitos humanos”, “pessoas obrigadas a fugir das
suas casas como não acontecia
em décadas” e “terrorismo global”.
Acontecimentos que dominaram
os últimos 20 anos e que, de acordo com a
intervenção de Guterres,
fizeram crescer a “instabilidade social, até a violência e o
conflito. Um pouco por todo o lado, os
eleitores não hesitaram em rejeitar o status
quo e o que quer que os políticos
levaram a referendo”, sublinhou
o antigo alto-
comissário da ONU para os
refugiados. Mais tarde, na conferência de imprensa que se
seguiu à intervenção,
Guterres foi questionado, por duas vezes, sobre a postura que
teria relativamente à nova
administração dos EUA, chefiada por Donald Trump, mas
nas respostas nunca saiu da
linha pré-definida. Fará com Trump o mesmo que
tenciona fazer com os outros
líderes mundiais, ou seja, “dizer a verdade” (com que
pretende “restaurar a
confiança” entre instituições) e “estabelecer uma plataforma de
cooperação baseada na vontade
de reformar as Nações Unidas”.
Guterres optou por contornar
um assunto sensível, e relativo a uma das maiores
potências da ONU, mas na
intervenção não deixou de manifestar preocupação com os
“muitos” que “perderam
confiança, não só nos seus governos, mas nas instituições
internacionais, incluindo nas
Nações Unidas”. Este novo quadro “aprofundou
divisão entre
as pessoas e os políticos”, disse
mesmo o secretário-geral indigitado
sublinhando que “o medo está a conduzir as
decisões de muitas pessoas no mundo”.
Assim, neste campo, a
prioridade de Guterres é “reconstruir as relações entre pessoas
e os líderes nacionais e
internacionais. É tempo para os líderes ouvirem e mostrarem
que se preocupam com as
pessoas, é tempo para a estabilidade global e a
solidariedade de que todos
dependemos. É tempo para as Nações Unidas
identificarem falhas e
reformarem a sua forma de atuar”.
Aqui, o primeiro ponto é
melhorar uma das falhas que o novo secretário-geral
identifica na comunidade
internacional: “A incapacidade para prever crises”.
Aliás,
disse mesmo que a prevenção
dos conflitos “não é um conceito novo”. Existe desde a
fundação da ONU: “É o que os
fundadores das Nações Unidas nos pediram para fazer
e constitui o melhor meio de
salvar vidas e aliviar o sofrimento humano”.
Mencionando os mais graves
conflitos mundiais, como “as crises agudas na Síria,
Sudão Sul” ou as disputas de
longa data “como o conflito israelo-palestiniano”, o
secretário-geral designado
afirmou que esses problemas “precisam de mediação,
arbitragem e diplomacia
criativa”. O próprio António Guterres garantiu que estaria
empenhado nesses cenários,
sem que os países envolvidos e com interesses nessas
regiões pudessem
desresponsabilizar-se: “Vou envolver-me pessoalmente através
dos meus bons
ofícios na resolução dos conflitos, mas constitui uma mais-valia
reconhecer o
papel primordial dos estados membros”.
A reforma da ONU: coordenar
melhor as 38 entidades que lutam contra o terrorismo
O ex-primeiro-ministro
português apontou três prioridades para a reforma que quer
levar a cabo nas Nações
Unidas: primeiro, “no trabalho a favor da paz”; segundo, no
“apoio ao desenvolvimento
sustentável”; terceiro, na “gestão interna” da organização.
As operações de paz,
mereceram de Guterres um elogio, com uma referência
aos “heróicos” elementos da ONU
que colocam “em perigo as suas vidas” ao terem
muitas vezes a “tarefa de
manter uma paz que não existe”. No entanto, será preciso
lançar as bases de “uma
reforma urgente”:
Essa reforma deve incluir um
exame do nosso trabalho no domínio da luta anti-
terrorista, e um melhor
mecanismo de coordenação entre as 38 entidades das Nações
Unidas relacionadas com o
tema”.
O futuro secretário-geral da
ONU não passou por cima dos temas mais polémicos e
embaraçosos para os capacetes
azuis, como os abusos sexuais em países africanos,
como na República Democrática
do Congo. E foi duro nas palavras: “O sistema da
ONU ainda não
fez o suficiente para prevenir e responder a crimes de exploração
sexual
cometidos sob a bandeira das Nações Unidas sobre aqueles que
supostamente
devíamos proteger”.
No que parecia ser uma
crítica ao antecessor (não era), Guterres disse que seria
severo em relação a novos
casos do mesmo tipo. Prometeu “tolerância zero” e a
criação de “estruturas e
legais e medidas operacionais” para que não se repetissem
casos semelhantes, medidas
pelas quais Ban-Ki Moon “combateu arduamente para
serem uma realidade”.
Objetivo: “Oferecer transparência, reponsabilização, proteção
e compensações efetivas às
vítimas”.
A “responsabilização” foi uma
palavra muito repetida por António Guterres para se
referir às estrutura. “Uma forte cultura de
responsabilização, precisa de mecanismos
de avaliação
independentes e efetivos”, afirmou.
A estrutura é tão pesada, que o
novo secretário-geral foi
aplaudido quando pediu mais “eficácia” e “menos
burocracia” para a organização
estar “mais focada nas pessoas” do que “nos
processos”. E deu um exemplo:
“Ninguém beneficia se demorarmos nove meses a
destacar um membro do staff
para o terreno”. Garantiu uma “cultura de
responsabilidade” e de
transparência e pediu “proteção efetiva para
os whistleblowers” —
a pessoas que denunciam os casos mais complicados.
As mulheres os jovens e um
regresso às origens
Sobre o discurso de Guterres
paira uma ideia que soa a contraditória em si mesma: é
reciso mudar, voltando à
raiz. Mudar porque o mundo que se defendia há 70 anos e o
mundo a em que nos movemos
estão desfasados. Por isso, é preciso voltar à raiz para
fazer diferente daquilo que
nos trouxe aqui.
É preciso, desde logo,
prestar atenção aos jovens, esse “vazio” universal no trabalho
das Nações Unidas e que
explica, em grande medida, a distância entre os eleitos e os
povos que os elegeram.
Durante demasiado tempo, os
jovens viram-se excluídos da tomada de decisões que
afetam o seu futuro”.
Tal como é preciso dar às mulheres um papel
igual ao dos homens –
nas imagens do
juramento da Carta das Nações
Unidas, entre os 15 homens que aplaudem Guterres
no palco apenas se vislumbra
um rosto feminino –, também é preciso “dar mais poder
aos jovens e
aumentar a sua participação na sociedade e o se acesso à educação,
formação e
emprego”. Porque se houver um
futuro melhor para despontar amanhã,
ele terá de ser construído
pelos mais novos.
Elevar o papel das mulheres é
a outra missão. O objetivo da ONU era alcançar a
paridade entre homens e
mulheres no ano 2000. Mas, “16 anos depois, estamos longe
desse objetivo”, sublinhou
Guterres. “Precisamos de um mapa claro com objetivos e
com um calendário que nos
permita alcançar a paridade por todo o sistema muito
antes do objetivo de 2030” e
o próximo secretário-geral – que venceu uma eleição
onde a paridade era ponto de
honra no início da corrida – jurou batalhar para que esse
princípio embelezador de
discursos passe da teoria à prática.
Guterres também se preparou
para um mandato pela Paz. E isso obriga
a um regresso
às origens de uma organização
que nasceu das trevas da II Guerra Mundial sustentada,
além da paz entre os povos,
também nos valores da tolerância, solidariedade, justiça, r
espeito e Direitos Humanos. É
essa a carta de princípios orientadora do mandato de
António Guterres para os
próximos dez anos.
Só que o próximo
secretário-geral sabe que esse caminho não se faz sozinho. Mesmo
quando “sozinho” significa
liderar uma instituição em que têm assento representantes
de 193 países.
Eu sei que o
secretário-geral não é o líder do mundo”,
reconheceu Guterres na
conferência de imprensa que
deu a seguir ao seu juramento.
Guterres sabe que não pode
tudo. Sem a vontade dos líderes políticos, Guterres não
pode mesmo nada. “O papel do
secretário-geral”, reconhece, “é para ser visto com um
valor acrescentado” e um
“apoio” a quem tem, de facto, poder na resolução dos
conflitos: os líderes
políticos de cada Estado.
“Acabar com esses conflitos”
que saltaram fronteiras e que representam hoje uma
ameaça global – terrorismo é
o termo que melhor sintetiza essa realidade – obriga as
Nações Unidas a contar com os
outros. Porque “vivemos num mundo complexo” e
porque “as Nações Unidas não
conseguirão ter sucesso sozinhas”. É por isso que “as
parcerias devem manter-se no
centro” da estratégia da organização, para que se possa
de novo acreditar que é
possível alcançar essa ideia tão cliché, mas ao mesmo tempo
tão atual: a paz.
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