Viver com Deus
Armando Soares, padre da diocese do Porto, natural de Vila Boa do Bispo. |
Acabo de fazer
70 anos. Pergunto-me: como sobrevivi?!
No meu tempo os
carros não tinham cinto de segurança, apoios de cabeça e airbag…
Viajávamos
soltos no banco de trás, na brincadeira, e isso não constituía nenhum perigo…
Os brinquedos
eram multicolores com peças que se soltavam, pintadas com tintas
duvidosas contendo chumbo e outros venenos.
Não havia
fechos de segurança nas portas dos carros, chaves nos armários dos
medicamentos, detergentes ou químicos domésticos.
Andava de
bicicleta de um lado para outro sem capacete, joelheiras ou caneleiras. Fazia
bicicletas de pau e os que tinham a sorte de morar perto de uma estrada
asfaltada batiam recordes de velocidade, gastavam a sola do sapato a travar e
muitas vezes acabavam a corrida no meio de um silvado…
Bebia água em
recipientes de barro, na torneira, na mangueira, na margem de um riacho e não
água mineral em garrafas esterilizadas.
Brincava
livremente na rua com uma única condição: voltar para casa ao anoitecer. Não
havia telemóveis mas os nossos pais sabiam onde estávamos. Era incrível.
Tínhamos aulas
só de manhã e íamos almoçar a casa. Não tínhamos piolhos: a mãe lavava-nos a
cabeça em casa com Quitoso e, com um pente fininho, removia a piolhada toda.
Braços
engessados, dentes partidos, joelhos esfolados, cabeça rachada,… alguém se
queixava disso? Todos tinham razão menos nós…
Comíamos doces
à vontade, pão com tulicreme, bebidas com o “perigoso” açúcar. Não se falava de
obesidade. Brincávamos sempre mas não éramos super-activos.
Nada de
playstations, de jogos de vídeo, de televisão por satélite, de computador, de
Internet com ficção científica… Só havia amigos…
E os cães e os
gatos? Comiam a mesma comida que nós (geralmente os restos) e não tinham nenhum
problema. Banho quente? Champô? Qual quê! No quintal um segurava o cão e o
outro com a mangueira ia lançando água enquanto ele o esfregava com sabão em
barra de lavar a roupa. Algum cão morreu ou adoeceu por causa disto?
A pé ou de
bicicleta íamos a casa dos nossos amigos mesmo que morássemos a quilómetros de
distância. Entrávamos sem bater à porta e íamos brincar.
Jogávamos o
futebol na rua, muitas vezes com a baliza sinalizada por duas pedras… às vezes,
quando éramos muitos, tínhamos de ficar de fora sem jogar nem sermos
substituídos. Mas isso não era o fim do mundo…
Na escola havia
bons e maus alunos. Uns passavam e outros eram reprovados. Ninguém ia por causa
disso ao psicólogo ou ao psicoterapeuta. Não havia a moda dos superdotados nem
se falava em dislexia, em problemas de concentração ou em hiperactividade. Quem
não passava, simplesmente repetia o ano e tentava de novo no ano seguinte.
As nossas
festas eram animadas por um gira-discos a fazer aqueles cliques da agulha a
deslizar no disco de vinil. As bebidas eram – claro! – a deliciosa gasosa com
cubinhos de gelo.
Tínhamos
liberdade, fracassos, sucessos e deveres… e aprendíamos a lidar com cada um
deles.
A única questão
é: como conseguimos sobreviver? E, acima de tudo, como conseguimos desenvolver
a nossa personalidade?
Os mais novos
pensarão que nesse tempo era tudo uma chatice… Mas como éramos felizes! Havia
moral! Havia dignidade! Havia respeito! Havia Deus!
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