PORTUGAL Entrevista: Três décadas a seguir o Papa
PORTUGAL
Entrevista: Três décadas a
seguir o PapaAURA MIGUEL entrevistada por
HUGO ANES
A jornalista Aura Miguel
acompanha há três décadas o Papa nas suas viagens apostólicas. São muitas as
histórias e peripécias de um percurso que lhe permitiu conhecer três Papas,
João Paulo II, Bento XVI e Francisco, por vezes com o protocolo posto de lado.
Em 2015, a jornalista da Renascença conseguiu uma entrevista exclusiva ao Papa
Francisco.
Voz da Missão: Quem é o Papa
Francisco? Como é ele como pessoa?
Aura Miguel: O Papa Francisco
é uma pessoa que gosta de estar próximo das pessoas. Ele diz mesmo que precisa
conviver com as pessoas! E nas viagens de avião isso também acontece: estar num
espaço fechado, só com jornalistas e o Papa ‘à solta’ é uma experiência
inesquecível, porque ele é mesmo próximo! Conversa, interessa-se, quer saber.
Mas também respeita, se a pessoa é tímida ou não quer falar, o Papa também não
insiste.
Voz da Missão: Como conseguiu
a entrevista exclusiva ao Papa?
Aura Miguel: Com a minha
experiência anterior de falar com os Papas João Paulo II e Bento XVI aprendi
que é uma oportunidade preciosa quando se tem o Papa à frente disponível. E ao
acompanhar as viagens do Papa Francisco foi nascendo uma relação de
conhecimento. Inicialmente eu falava-lhe muito de Fátima. Até que percebi que
ele já estava farto de eu lhe falar sempre do mesmo assunto. E foi quando
surgiu a ideia de lhe pedir uma entrevista. E ele riu-se. Após esta primeira
tentativa escrevi várias cartas a solicitar a entrevista, esperei e cheguei a desanimar
perante a ausência de resposta. Passados vários meses, no decorrer da viagem à
América Latina, quando o Papa vem saudar os jornalistas e chega a minha vez,
ele mete a mão no bolso da batina, tira um envelope e diz-me: “Isto é para si”.
Para meu espanto, olho para o envelope e tinha escrito: “Sra. Aura Miguel”.
Abro o envelope e vejo a carta enviada a pedir a entrevista. Na mesma carta
vejo escrito pela própria mão do Papa, a data e a hora da entrevista. Para mim
este gesto do Papa Francisco é mais um exemplo da sua incrível proximidade!
Voz da Missão: Como
descreveria cada um dos Papas que acompanhou? Qual foi a marca que deixaram no
seu pontificado?
Aura Miguel: São três homens
completamente diferentes e por isso é tão fascinante ver como o sucessor de
Pedro pode encarnar em caracteres, estilos e idades totalmente diferentes.
Voz da Missão: Comecemos por
João Paulo II…
Aura Miguel: João Paulo II foi
eleito Papa aos 58 anos, era um jovem, praticava desporto, saía para fazer ski,
mandou construir uma piscina e no verão recebia muitas vezes os cardeais que lá
iam ter com ele. Essa normalidade a que estamos agora habituados com o
Francisco, foi introduzida pelo Papa João Paulo II. Ele vinha de uma zona da
Europa que tinha sofrido muita perseguição, o próprio João Paulo II havia
sofrido a perseguição nazi, foi órfão muito cedo dado que a mãe morreu quando
ainda era criança e aos 20 anos perdeu o pai. Foi seminarista clandestino,
sofreu a perseguição soviética com grandes e graves limitações à liberdade religiosa
e de repente é Papa. A frase dominante do pontificado dele foi. “Não tenhais
medo! Escancarai as portas do vosso coração a Cristo! Deixai Cristo entrar em
tudo!”. Portanto, introduziu um tom de Esperança incrível. Eu acho que João
Paulo II, pode ser considerado o Papa da Esperança porque veio introduzir um
sopro de esperança na Igreja, ao ser tão jovem, tão robusto e tão dinâmico. E
também esperança, quando ficou decadente e doente e aguentou até ao fim com
aquela disponibilidade de quem já deu tudo e não se importa de passar as
humilhações da doença e da fragilidade.
Voz da Missão: Seguiu-se Bento
XVI…
Aura Miguel: Bento XVI foi
claramente o Papa das razões da Fé. Um Papa que se bateu e nos puxou para uma
grande exigência. E foi muito incompreendido por causa disso. Bento XVI
apercebeu-se de que andamos anestesiados e acomodados, entrámos numa certa
rotina e isso mata. Mata a fé. Aliás, ele deu esse alerta aqui em Portugal ao
dizer que nós, às vezes, estamos mais presos com as consequências da fé, dando
a fé por adquirida, o que é cada vez mais irrealista. Não é verdade que a fé
está adquirida. A fé conquista-se permanentemente. Mas hoje em dia, já não dá
ser cristão sociologicamente. Tem de se fazer um percurso pessoal, de perceber
as motivações da fé do ponto de vista da razão. Eu acho que Bento XVI foi uma
inteligência lúcida, absolutamente incrível e muito superior à media. Acho
também que ainda está por lhe prestar a devida justiça ao extraordinário
pontificado que foi o de Bento XVI. Só muito mais tarde se lhe vai reconhecer
isso. Bento XVI é um doutor da Igreja claramente. É o Papa da Fé.
Voz da Missão: E atualmente
temos o Papa Francisco.
Aura Miguel: Francisco é o
Papa da Caridade, claro. Porque é vê-lo em ação! Francisco quer estar junto das
pessoas. É o Papa da Misericórdia. É o Papa do abraço. É o Papa que gosta de
considerar a Igreja como um hospital de campanha em tempo de guerra, com as
pessoas feridas que aí encontram um lugar para serem curadas. Curadas de quê?
Das feridas interiores, das necessidades materiais, espirituais, humanas. É
claramente o Papa da caridade, que tem esta preferência por visitar contextos
de sofrimento, onde as pessoas vivem em locais mais marginais e mais esquecidos
da sociedade.
Com o devido respeito, acho
que podemos conotá-los desta maneira: João Paulo II é a Esperança. Bento XVI é
a Fé. E Francisco é a Caridade.
Voz da Missão- Aura Miguel é
jornalista, mas também é escritora. Recentemente publicou um novo livro
‘Conversas em altos voos’, onde relata as conversas e a entrevista que realizou
ao Papa Francisco. Porquê esta preocupação em partilhar e guardar a memória
destes acontecimentos em livro?
Aura Miguel: Eu encaro esta
minha profissão como um grande privilégio, pois fazendo o que faço, ao mesmo
tempo cresço na fé. E não tinha sentido nenhum guardar esta experiência só para
mim. Aliás, só tem sentido se o partilhar com outros à minha volta. Portanto,
tudo o que eu faço como jornalista é ir para ver e contar. É essa a minha
tarefa. E neste desempenho há muita coisa preciosa que vai ficando e se vai
acumulando, uma espécie de tesouro, que não é para ser fechado senão morre. Ao
fazermos uma experiência muito enriquecedora, se a guardarmos só para nós
murcha. Quando temos estas experiências, no meu caso é viajar com o Papa e ver
o sucessor de Pedro em ação. Mas também há muita gente que tem experiências
humanas riquíssimas. Estas experiências tornam-se fecundas se forem
partilhadas.
Voz da Missão- Brevemente,
celebraremos o Centenário das Aparições em Fátima e o Papa Francisco
juntar-se-á a nós nesta celebração. Que visita será esta, já que o Santo Padre
afirmou que vem como peregrino e não como chefe de Estado do Vaticano?
Aura Miguel: O Papa Francisco
é muito mariano. Tem uma grande ligação com Nossa Senhora. Vai constantemente
oferecer flores na Igreja de Santa Maria Maior, antes de sair em viagem. Tem
também uma grande devoção a Nossa Senhora de Guadalupe, de Aparecida e a Maria
Desatadora dos Nós. Mas acho que ele de Fátima ainda não conhece muito. E por
isso, intuo que vai ter uma grande surpresa e vai sair daqui uma pessoa
diferente. Digo isto porque sei como vivemos e expressamos a fé em Fátima e
pelo sentimento de acolhimento de mãe que todos experimentamos quando vamos a
Fátima. Por isso, creio que sendo o Papa tão mariano e dando tanta preferência
aquilo que ele chama a teologia do povo acho que Francisco nunca mais vai
esquecer a experiência.
Voz da Missão – O jornal Voz
da Missão tem como objetivo dar visibilidade à atividade missionária da Igreja.
Que atenção dá o Santo Padre e a Santa Sé a estes homens e mulheres que vão
para onde for preciso e vivem na íntegra o mandamento de Jesus: “Ide e anunciai
a todos os povos a Boa Nova”?
Aura Miguel: O Papa Francisco
dá uma total atenção. E basta olhar para a escolha das suas viagens e para a
preferência por aqueles que arriscam e dão a vida – ele também a dá - sobretudo
nos locais onde uma presença humana é tão fundamental. Um bom exemplo da
atenção do Papa aos países de missão foi a escolha da Porta Santa na República
Centro Africana para abrir o Jubileu da Misericórdia. Pela primeira vez na
história da Igreja e por escolha do Papa, a primeira Porta Santa que se abriu
não foi na Basílica de São Pedro, em Roma, mas sim a Catedral em Bangui, na
República Centro Africana. Esta viagem foi de alto risco, pois ninguém queria
assegurar a proteção do Papa e da sua comitiva. A atenção do Papa pelos países que
mais precisam de apoio é constante, recordo as viagens ao Uganda, ao Quénia e o
desejo recente de ir ao Sudão do Sul.
Voz da Missão: O próprio Papa
aos seus 80 anos continua com o ímpeto missionário...
Aura Miguel: Sim, recordo que
o Papa também deixou a sua terra, a Argentina, onde já tinha tudo previsto para
a sua reforma, o que ia fazer e de repente deixou tudo. Sim, também podemos
considerá-lo com este espírito missionário que larga tudo e dá a vida, quando
já tem 80 anos. Portanto, se é possível dizer que o Papa tem alguma preferência
é por estes missionários que partem e deixam tudo e dão a vida nos lugares onde
é mais preciso. Eles são a cara do Papa Francisco. E também por isso se chama
Francisco. O Francisco de Assis também foi assim também no seu tempo: largou
tudo. O Papa podia ser um pastor com uma vida cómoda, mas ele gosta de se
desinstalar. E isso é por excelência a vocação de um missionário.
Voz da Missão- Na Europa, as
sociedades são cada vez mais plurais e seculares. Na sua opinião, como podemos
nós a Igreja Católica viver e transmitir a fé neste ambiente?
Aura Miguel: O Papa Emérito
Bento XVI, no seu pontificado alertava ao dizer que sem uma experiência de
relação pessoal com Cristo, não dá. E o Papa Francisco diz o mesmo de um modo
pragmático: parece que temos o ‘documento do católico’. Aí registámos que
fizemos a primeira Comunhão, o Crisma, colaboramos na paróquia e já está! Não.
A única maneira de guardar a fé numa sociedade secularizada é aprofundar a
relação pessoal com Cristo. E depois virar-se para fora. Ou seja, não se
avança, sem um trabalho pessoal quotidiano, que implica mesmo a liberdade
individual de cada um, que implica deixar-se olhar por Cristo. Só se avança,
parando para rezar. O Papa Francisco está sempre a lembrar isso: “Rezem!
Convertam-se!”.
Voz da Missão: E esta atitude
orante tem de ser contínua?
Aura Miguel: Sim, a conversão
tem de ser permanente. A desinstalação tem de ser permanente. E quanto mais
vivermos esta inquietação saudável que me diz que eu dependo de Deus, vou
perceber que Ele está sempre a dar-me sinais. Inversamente, se eu acho que já
está tudo conquistado nem sequer reparo nesses sinais. Portanto mais tarde ou
mais cedo, a fé esmorece. Mas se eu tiver esta consciência permanente de que
Deus é maior do que eu. E é Ele que me faz a mim ser eu, tenho vontade de
conhecê-Lo melhor. E isso é favorável para a minha vida. Portanto, quanto maior
for a relação pessoal com Cristo, mais cresço e mais bem faço à minha volta.
Mas se não tenho esta vontade em aprofundar a relação com Cristo, a minha
relação com Deus é uma espécie de trincheira, um moralismo, um conjunto de
regras que não são nada atrativas, nem sequer para a própria pessoa.
Voz da Missão- Sendo
jornalista na Rádio Renascença, como mantém o entusiasmo e a frescura no
desempenho do seu trabalho?
Aura Miguel: Nós temos cá
dentro uma espécie de barómetro, que eu acho que é o coração. Não falo de
sentimentalismo. Falo que sermos sérios cá dentro e perceber que os muitos
livros publicados, a entrevista exclusiva ao Papa ou acompanhar o Papa nas suas
viagens, em última análise, não é sinónimo de felicidade. Eu tive essa
experiência quando entrei no avião papal pela primeira vez, em que os meus
colegas mais velhos eram tão desinteressantes, porque pensavam que já sabiam
tudo. Neste momento já fiz 90 viagens. Portanto, já sei como é que se viaja com
o Papa. Pode-se inclusivamente correr o risco de estar mesmo ao lado do Papa e
passar tudo à nossa frente e não reparar. Isto é a última coisa que eu quero!
Porque eu acho que nós somos feitos sempre para mais!
Voz da Missão: E que ‘mais’ é
esse?
Aura Miguel: Para a plenitude.
Sempre mais, mais, mais! Até chegar à plenitude do Céu! Se achamos que já
sabemos tudo e abdicamos deste desejo de plenitude estamos errados. Nós somos
feitos sempre para mais! Por exemplo, ao recordar João Paulo II pergunto-me
como é que ele podia ser tão atrativo, sendo tão velho, tão decadente e tão
doente? Porque ele mostrava através daquela liberdade de se mostrar assim, um
desejo de plenitude, que não era definido nem pela idade, nem pela doença, nem
pela fragilidade. Era definido por tomar a sério o desejo do coração. Portanto,
aquela receita: “Escancarar completamente o coração a Cristo”, João Paulo II
fê-lo até ao fim. Depois Bento XVI, também fez, indo-se embora. Foi igual! Não
estava agarrado à cadeira, nem agarrado ao poder. Porque ele já tinha
escancarado o coração de tal maneira a Cristo, que fez o que ele discerniu com
Cristo. E este escancarar o coração a Cristo é para levar até ao fim da vida.
Voz da Missão: A receita é
escancarar o coração a Cristo…
Aura Miguel: Sim. A receita é
olhar para estes grandes homens que Deus nos dá. E questionarmo-nos como é que
apesar da idade e de um percurso feito, Francisco, Bento XVI, João Paulo II,
etc., tinham todas as razões e legitimidade para se acomodarem. Porque é que
eles dizem ‘sim’? É mesmo a questão da vocação: “Amas-me mais do que..? Sim,
Senhor, tudo sabes…”. Se dizem sim, é como se Deus lhes estivesse
permanentemente a tirar o tapete debaixo dos pés. Porque eles confiam
permanentemente, n’Aquele que é a plenitude. E nós somos feitos para essa
plenitude. A aventura da vida é tomar a sério esse desejo de plenitude e não
reduzi-lo. Hoje em dia, o nosso risco é que a maioria das pessoas desanima e
acha que isso não é possível. Mas o ser cristão é bater-se primeiro na sua
própria vida e depois à sua volta. Isso no fundo é a Esperança. O que é que nos
anima? Nós sabemos perfeitamente identificar aquilo que nos corresponde e está
carregadinho de esperança. Daquilo que é só um bocadinho de entusiasmo. Havia
um poeta italiano que dizia: “A noite do grande dia de festa. Quando chegamos a
casa e ficamos sozinhos. Passou a festa e depois? O que fica?” Ora, o cristão
quer que fique sempre! E o que fica sempre? É o Outro maior do que nós. É
Cristo que fica sempre! É Ele que nos preenche!
Comentários
Enviar um comentário