Vaticano II ou um novo Concílio? por Armando Soares
O Concílio
Vaticano II ainda está esperando uma sua aplicação prática e integral. A
Proªessora Cláudia Di Fillipo Bareggi, Docente de História Moderna na
Universidades dos Estudos de Milão faz um ensaio sobre a evolução da Igreja
católica e do Papado desde a época tridentina até aos tempos actuais,
tentando lançar uma avaliação correcta do Vaticano II e da sua difícil
actuação ao longo destes cinquenta anos, e tendo em atenção a reviravolta
ainda recente, relacionada com a eleição do Papa Bergollio.
Os últimos
meses conferiram um renovado aspecto às comemorações e avaliações sobre às
consequências do Vaticano II, devido à demissão do Papa Bento XVI e à
sucessão do Papa Francisco. Um concílio que ainda não penetrou na realidade,
ultrapassado, ou um novo Concílio.
1.De Trento ao Vaticano II. João XXIII teve a ideia
corajosa de lançar um novo Pentecostes na Igreja para recuperar a
credibilidade e colocar-se em sintonia com os tempos.
Na modernidade – séc XV e XVI – deu-se uma mudança
importante nas relações entre a Igreja e o Estado procurando os Estados da
Reforma fortalecer o seu poder apoiando-se na Igrejas quase nacionais – como
as Igrejas luteranas alemãs e escandinavas e a Igreja anglicana – procurando
assim um melhor controle dos seus territórios.
Na Igreja de Roma exigiu-se mais tempo para estudar
o caso, porque havia um grande grupo de eclesiásticos com formação humanista,
mais tolerante e apostando no diálogo sempre difícil e no final ineficaz. A
Igreja romana optou pelo Concílio.
2.Concílio de Trento e a crise do Papado. O Concílio
de Trento foi um acontecimento grandioso: reformou a Igreja no seu interior
produzindo gerações de presbíteros muito mais preparados como pastores. Foi
um processo muitas vezes travado por inúmeros vínculos perversos da Igreja
com os poderes fortes da socieade, da nobreza do tempo.
Assiste-se, no entanto, neste período, a um declínio
do Papado romano. A aliança trono-altar apoiada desde o início do Sacro
Império e na sociedade medieval quando cada estado recebia vantagens ao
reconhecer uma única confissão, estabelecendo relações com uma só igreja
cristã: a confessionalização. Surgem os conflitos religiosos e provocam-se
sanguinolentas guerras de religião fazendo nascer um anticlericalismo que
desabrocha no deísmo do século XVII e no ateísmo do século seguinte.
Contudo o papado europeu manteve durante muito tempo
um lugar notável, pela ligação a Roma através dos Núncios. No entanto até na
área mediterrânea, os Estados católicos ligados a Roma começavam a sentir o
peso intolerável de antiquíssimos privilégios sociais, económicos e
jurídicos, concedidos à classe eclesiástica.
A raiz das dificuldades sucessivas da Igreja,
pertinazmente clerical, até machista – incapaz de se resignar a perder o
poder e a passar de maioria absoluta privilegiada a uma minoria mas
significativa.
Um dos problemas mais sérios da Igreja de Roma era o
de subtrair-se à fusão do poder civil e estatal. Contra Roma se moveram os
movimentos intelectuais do século XVIII, considerando a católica como um
modelo pouco recomendável, conservador, ligado ao passado e às forças mais
retrógradas. Napoleão faz a escolha antieclesiástica sobre a laicidade do
Estado, que desejava relegar a religião a uma condição totalmente privada.
3.A importância do Estado da Igreja. Bento XIV
manteve relações directas com Voltaire e procurou um diálogo com a cultura do
seu tempo… difíceis; Deu-se a ocupação do Estado Pontifício em 1809 e o
aprisionamento de Pio VI e Pio VII. Um Papado assediado cultural, ideológica
e politicamente procurou rejeitar, mediante encíclicas como a Mirari vos
(1832) e o Syllabus (1864) tudo aquilo que parecia moderno. O Papado do
século XIX terminou por se fechar em si mesmo, chegando a definir o primado
petrino e a infalibilidade papal ex cathedra.
Será preciso chegar Leão X para entrever de novo um
atitude de interesse pela contemporaneidade. Todavia, se tanto Pio XI como
Pio XII pensaram, decerto impedidos pelas duas grandes guerras, na
possibilidade de proclamar um concílio, foi somente para retomar e completar
o Vaticano I, interrompido de maneira dramática e jamais encerrado
oficialmente.
4.A reviravolta Roncalli e Concílio Vaticano II.
Encontramo-nos na era contemporânea. O Papa Roncalli tomo a decisão, num
“momento não menos grave para a Igreja e para a salvação do mundo onde era
preciso saber distinguir os sinais dos tempos (e)… vislumbrar, no meio de
tantas trevas, muito indícios promissores. (Ruggieri G., Ritrovare il concilio,
pág. 25)
5.Uma visão diferente do mundo. A reviravolta não
poderia ser mais clara: o abandono de uma perspectiva teológica, a favor de
uma óptica inteiramente pastora; a necessidade urgente de encontrar uma
linguagem compreensível – a partir de uma expressão litúrgica - adequada aos tempos; uma visão
verdadeiramente nova do mundo em que é real a presença salvífica do Senhor;
saber ver com optimismo os sinais dos tempos, não para a Igreja se opor ou
condenar os erros… mas para usar o remédio da misericórdia; em vez de renovar
suas condenações deve ir ao encontro das necessidades hodiernas, manifestando
a vitalidade da sua doutrina; reconhecer sinceramente que todos os homens,
crentes ou não-crentes, devem contribuir para a recta edificação deste mundo
no qual se encontram e vivem juntos; não ignora aquilo que ela (Igreja)
recebeu da história e da evolução do género humano. O reconhecimento da dignidade humana é a
base contida nos documentos conciliares, em especial, Gaudium et Spes,
Unitatis Redintegratio, Apostolicam Actuositatem, Lumen Gentium,…
Inovadora sobre o papel dos leigos: “aos leigos cabe
a tarefa de assumir a instauração da ordem temporal como missão que lhes é
própria e, nela, orientados pela luz do Evangelho e pelo pensamento da Igreja,
impelidos pela caridade cristã, agir de modo directo e concreto; como
cidadãos, segundo a competência específica e sob a sua própria
responsabilidade.
6.Actuação difícil do Vaticano II. Para avaliar correctamente a história do Concílio, precisamos de ter
em consideração o tempo em que ele começou e a primeira década seguinte.
Acolhido com grande sucesso, no final dos anos sessenta do século passado, o
Concílio representava uma grande expectativa. Facilitou o diálogo, o que foi
uma decepção; os estudantes invadem as Praças da Europa com o slogan da
fantasia ao poder; o feminismo ficou letra morta; o diálogo era desejável mas
não podia ser imposto.
Não deixou de ser positivo o aspecto da liturgia,
com enormes vantagens de participação e compreensão.
7.Em Milão. Outras consequências são menos evidentes
como a educação cristã, a autonomia real dos leigos - e das mulheres – na vida cultural, política
e económica e o seu papel activo no seio da Católica.
Podemos analisar o exemplo de Milão do Cardeal
Martini, em 30 anos de actividade: inserir imediatamente os decretos na
praxis pastoral e na vida de fé do povo; compromisso com a formação, também
laical; importância reservada ao diálogo inter-religioso – judaico e
muçulmano – e a um ecumenismo dentro do território diocesano; organização
conducente a um concreta corresponsabilidade dos presbíteros e dos leigos;
atenção aos casais, sobretudo jovens, e a todos os viventes em dificuldade.
Sentimos concretamente a atenção respeitosa que ele reservava à cultura do tempo,
o seu vigoroso interesse pelo mundo do trabalho e da economia, pela justiça,
pelos direitos humanos, pela paz, pela escola e por toda a rede de agências
educativas.
Dos fiéis leigos fala-se como de protagonistas na
pastoral ordinária, como de pedras vivas das nossas igrejas, a partir do
sacerdócio baptismal comum; a família torna-se um centro de atracção
primário: um casal que gera a vida, pais catequistas, uma família que se
torna sal e fermento nos condomínios, nos escritórios, nas escolas, nas ruas,… timidamente, chega a insinuar-se a
possibilidade de um diaconato feminino…
8.Um aplicação ainda incompleta. Se, há cinquenta anos, era sensato falar
abertamente da formação dos leigos, hoje será necessário reconhecer que
muitos esforços foram envidados neste sentido, e que já existem leigos e
leigas bem formados, mas que a formação teórica deve tornar-se também
concreta, para que as pessoas interessadas adquiram experiência e
maturidade pastoral; que os leigos não
devem ser considerados como sempre sub tutela, muito distantes dos lugares de
direcção e das responsabilidades efectivas. É doloroso observar que, talvez,
somente se recorrerá aos leigos quando a escassez de presbíteros se tornar ainda mais grave, por
força das circunstâncias.
Constataremos ainda que nas nossas comunidades
trabalham mulheres ainda menos responsabilizadas e sempre observadas com
desconfiança e quase suspeita. “Já em 1963, João XXIII na Pacem in Terris
colocara a presença feminina na sociedade como um dos sinais dos tempos a ser
considerado; depois, em 1995, João Paulo II na sua Carta às mulheres,
sublinhava o génio feminino e a dívida incalculável que a Igreja acumulou em
relação às mulheres, lamentando-se da importância ainda demasiado escassa que
se lhes reserva. E no entanto, não se consegue preencher esta lacuna – nem na
Igreja baixa, nem na Igreja alta – e extremamente sacrificadas são de modo
especial as religiosas e as consagradas muitas vezes deveras preparadas como
flósofas, teólogas e biblistas de alto nível.” (Cláudia Bareggi)
9.Uma mudança repentina. «Existem outros temas
sensíveis e complexos, que não por acaso Paulo VI evitou expor ao debate dos
Padres conciliares: o celibato e, ainda mais, o primado petrino e a relação –
teológica e pastoral – entre o Papa e os Bispos, com consequências
importantes sobre o diálogo com as Igrejas irmãs. E, efectivamente estes
temas – além de outros mais, como por exemplo a relação entre a fé e a
cultura, ou entre fé e ciência – levavam o Cardeal Martini a afirmar que
seria necessário proclamar um novo concílio.»
«Pois bem, a impressão é de que por um lado a
demissão do Papa Bento XVI e por outro lado a eleição do Papa Francisco de
certa forma mudaram as Cartas na mesa. A coragem de Ratzinger indicou sem
meios-termos, parece-me que pelo menos historicamente, que o primado é
sobretudo um serviço, e que quando este não pode mais ser desempenhado de
modo pleno, a mão passa àqueles que o Papa Bergoglio continua a chamar seus
irmãos bispos. Por outro lado, as primeiras indicações programáticas do novo
Pontífice aludem à vontade de mudar de rota também sob este ponto de vista,
fazendo prevalecer definitivamente uma visão pastoral muitas vezes invocada –
penso por exemplo no Congresso de Verona, com os seus âmbitos de trabalho –
mas nunca verdadeiramente levada a cabo.»
Um presbítero com o qual desempenho o trabalho
pastoral universitário afirma que a eleição do novo Pontífice e os sinais que
ele continua a lançar têm por si só o valor de um pequeno concílio: e acho
que ele tem razão.» (Cláudia Di Fillipo
Bareggi)
Mas não seria mais frutífero para a Igreja reunir-se
em assembleia para discutir todas essas questões?!
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