ERMESINDE TEÓFILO: Despedida

ERMESINDE
TEÓFILO: Despedida

Ermesinde, 4 de Setembro de 1984

Já há uns tempos que ando para escrever-vos e dar-vos a notícia oficial de mais uma mudança que já não esperava de maneira nenhuma. Mias uma vez a Administração geral em Roma me chama para um trabalho internacional em Itália, como membro da equipa que trabalha no Centro Internacional de Espiritualidade Marista, de língua inglesa na cidadezinha de Manziana. Não é propriamente em Roma, mas há uns 60 Km a nordeste de Roma.

Não quis dizer que não, que não é o meu hábito. Disse sim com alegria e vou procurar fazer o melhor possível o meu novo trabalho. No meu horizonte pessoal e marista estava aliás outra experiencia também internacional, mas noutros quadrantes maristas, concretamente na América Latina, mais concretamente ainda no Brasil. É um sonho antigo, este de fazer alguma experiencia missionária e marista nesse continente e nesse país. Seja o que Deus quiser! Disse SIM, mas lá fui dizendo às nossas “autoridades romanas” que já é tempo de escolherem gente mais nova para estas atividades internacionais.


Continuar a Internacionalidade

Eu pensava que o facto de já ter dado 20 anos do meu trabalho marista à nossa Administração geral já era bastante. Mas parece que não e que o Senhor volta a bater à minha porta. “Estou à tua porta e bato” diz-nos o Apocalipse. É importante deixar o Senhor entrar na nossa “porta”, neste ano jubilar em que recordamos de modo especial que a PORTA, a grande PORTA é ELE, Cristo. “Eu sou a porta”, disse Ele.

Por todo o mês de Julho voltarei pois a Itália e temo bem que não tenha tempo para despedir pessoalmente de vós, o que bem gostaria de fazer. De facto, a minha vida nestes últimos tempos tem estado bem cheia de atividades, em geral para prestar serviço de traduções a várias organizações internacionais maristas. Agora mesmo, já tenho em minhas mãos um bilhete para uma deslocação ao Sri Lanka, Índia e Paquistão, isto é à Província Marista da Ásia do Sul. E logo de seguida outra deslocação aos Estados Unidos para participar no Encontro Internacional das Universidades Maristas. Agradeço a Deus a saúde que me tem dado (e peço que me continue a dar) para poder colaborar nesses encontros tradicionais.

O que foram estes três últimos anos?

A comunidade
E o que foram estes três anos aqui em Ermesinde, desde que voltei de Roma em Maio de 2013? Em primeiro lugar devo dizer que gosto de Ermesinde. Gostei de ter estado por estas terras, gostei das suas gentes e da pequena comunidade onde me inseri. Pequena e tornando-se cada vez mais pequena: cheguei aqui, éramos 5 irmãos; depois fomos 4 e agora somos 3. É evidente que com a diminuição de Irmãos temos que trabalhar de maneira diferente. O Reino de Deus na terra avança através dessas adaptações. O mesmo se passará nas dioceses, certamente. Dioceses que antigamente tinham mais de 300 sacerdotes e hoje têm, por exemplo, 66, têm que olhar para o seu trabalho pastoral de modo diferente para responder aos desafios da atividade pastoral, hoje em dia. E Deus sabe que tem que ser assim. E com isso o Reino chega sempre. Lentamente, de uma maneira desapercebida. Mas chega! Eu digo que quando eramos quase 10.000 Irmãos maristas, estávamos em 66 países. Hoje somos 3.400 e estamos em 80!

Colaboração com a Paróquia

Depois houve uma pequena colaboração com a Paróquia na Pastoral dos Batismos. Além do pouco que se partilha com os pais e os padrinhos das crianças a batizar essa atividades pastorais mantêm-te em contacto com o Povo de Deus. E isso é sempre muito positivo. Por outro lado fui assistindo (é bem a palavra, assistir, apenas!) às reuniões da Pastoral Universitária da Universidade do Porto. Foi e é um campo que sempre me entusiasmou e a tal possível deslocação até ao Brasil, estava, de certo modo, também ligada ao mundo universitário. Mas por agora, como dizia, Deus quer-me no mundo da Espiritualidade Marista, com grupos de língua inglesa. Procurarei sempre fazer o melhor, onde quer que me encontre.

A atividade dos livros

Mas a grande atividade foi concluir a série que tinha começado, que alguns de vocês conhecem, com o título CARTAS A SILVANA EMIGRANTE PORTUGUESA NA SUÍÇA. Cinco volumes estão publicados. E cinco estão prontos para ser publicados. Foi um trabalho gigantesco a ordenação destes últimos cinco volumes com uma quantidade expressiva de fotos, condizentes com o texto. Devido à minha deslocação para Roma já não farei a tiragem de 1000 volumes que fiz em quase todas as minhas publicações. Será bem menor, embora me fique mais cara.

Fico satisfeito com esse total de dez volumes que contêm 81 cartas e 2.300 páginas. São uma espécie de “memórias pastorais” de 34 anos diz um dos meus leitores que escreveu um dos prefácios: exatamente desde 1980 (onde comecei a coleção, na Suíça, onde estudava na altura) até 2014 que cerra a coleção com uma carta de última hora sobre a II Assembleia Internacional da Missão Marista, realizada em Nairobi, em Setembro de 2014. Relembro aos meus “compradores” que todo o dinheiro que foi feito com a venda dos livros, só pode ser utilizado em projetos missionários e socias que beneficiem diretamente os mais pobres. Foi para esses projetos que eu quis, desde o início, o dinheiro dos meus livros. E foi assim que os meus Superiores quiseram também. Como alguns amigos me diziam, acabei por desenvolver um autêntico “apostolado do livro”. Oxalá que assim tenha sido e que assim seja no futuro. Um apostolado de solidariedade com os pobres.

Intérprete AD HOC

Não faltaram ocasiões de servir como tradutor em encontros internacionais maristas que me levaram a um bom número de partes do mundo marista. Têm sido sobretudo traduções orais que não gosto da tradução escrita. Não estou de maneira nenhuma preparado para isso, embora também me aconteça fazê-la de vez em quando. Dizem-me até os especialistas nestas coisas, que eu, uma vez que só faço tradução oral, não sou tradutor, mas INTÉRPRETE. Estamos sempre a aprender! Intérprete! Nunca me pensei como tal. Mas sentado numa cabine, ou caminhando com os auriculares bem agarrados ao ouvido (que às vezes já mês escapam palavras, porque causa da minha surdez no ouvido esquerdo!) lá tenho desempenhado esse papel como posso. A audiência por excesso de generosidade até me diz que faço bem. São “rosas” que devemos aceitar com muita humildade!

Já que falo de Rosas

Amanhã, dia 21 de Maio é o dia da festa litúrgica de Santa Rita (faleceu em 21/05/1447) aqui em Ermesinde onde há o Santuário de Santa Rita, não faltarão “as rosas para Santa Rita”. Como amanhã viajo bem cedo para Lisboa, já lá fui hoje levar a minha rosa. E não era, mesmo assim, dos primeiros. O Santuário começa a ter uma beleza especial adornado com tantas rosas. Amanhã milhares de peregrinos acorrerão a este santuário, tanto mais que este ano é um santuário jubilar para este Ano da Misericórdia.

De facto, eu todos os dias vou à missa a este santuário de Santa Rita, portanto, não me faltam ocasiões para levar a minha Rosa à “querida Santa Rita”, como diz o povo por aqui. Com tantos pedidos que a “querida Santa” tem e sendo muitos dos pedidos “casos impossíveis”, estou convencido de que Santa Rita deve ter ume escritório muito grande lá no céu, com um bom número de secretários e secretárias, santos também sem dúvida, para estudar esses casos impossíveis. Mas também estou convencido de que Santa Rita é capaz de “despachar” muitos desses casos sem estudo prévio, para não fazer esperar as pessoas. A Santa não dever querer grandes filas de espera. Mais vale resolver logo os problemas.
Eu levei a minha rosa, mas não fui só pedir. Fui também louvar o Senhor por toda esta onde de fé que se vive e se vê neste santuário. Uma fé que quer alcançar e alcança a Cristo com a ajuda e a intercessão de Santa Rita. Uma devoção nunca deve para neste ou naquele santo. Deve ser caminho ou passo intermédio para chegar a Cristo. João Paulo II dizia mesmo em relação ao Rosário, oração em que poderíamos centrar a nossa atenção só em Nossa Senhora: “O Rosário é uma oração cristológica na qual meditamos os mistérios de Cristo com Maria”. Gosto muito desta afirmação. Maria é também caminho para Cristo e é Cristo que se deve tornar o CENTRO da nossa oração.

Voltando a Santa Rita, conheceis certamente a lenda da Rosa de Santa Rita. Era Inverno. Santa Rita estava muito doente. Pediu a uma amiga que a visitou que fosse ao jardim da santa e lhe trouxesse uma rosa. Era inverno, tempo que não é propriamente tempo de rosas. Mas a amiga foi. E no meio da neve branca surgiu uma rosa que colheu e levou a Santa Rita que a colocou junto do seu Cristo! É importante este detalhe: a rosa não era para Rita, era para Cristo. Celebrar Santa Rita significa, pois, oferecer-lhe pelo menos uma rosa, sabendo que de facto é uma rosa para Cristo. Que rosa queremos nós oferecer a Cristo nesta festa de Santa Rita? Até esta lenda (ou facto histórico, não sei) nos ajuda a sublinhar o que dizia antes: Cristo é o fim e o centro da nossa oração. Os santos e mesmo Maria são intercessores (poderosos, isso sim) junto a Cristo por nós.

Muitas imagens de Santa Rita representam-na a contemplar o crucifixo. Gosto dessa imagem. Uma representação assim diz-nos que a oração deve ser esse olhar contemplativo de Cristo a quem amamos profundamente, como Rita amava. Uma imagem assim, para mim e creio que para todos nós é uma chamada de atenção a nos tornarmos verdadeiros contemplativos, isto é, pessoas que vivem na intimidade de Deus e seu filho Jesus, no Espírito Santo. Essa intimidade com Deus e com Cristo, e ajudados pela intercessão dos santos da nossa devoção, ajuda-nos depois a sermos apóstolos de facto preocupados pelo Reino de Deus. O nosso agir torna-se apostolado. E seremos o que agora se escreve por aí em alguns livros de espiritualidade: seremos CONTEMPLATIVOS NA AÇÃO ou o que também poderia ser: APÓSTOLOS NA CONTEMPLACÃO. O que na prática quer dizer: homens e mulheres de Deus que centram em Deus e em Cristo a sua oração na qual adquirem as forças para a sua atividade apostólica, seja na paróquia, na escola, no hospital, na fábrica, no local de trabalho, enfim, onde quer que estejamos. Que santa Rita nos ajude precisamente a ser contemplativos na ação.

Por coincidência, fiz esta peregrinação, hoje dia 20 de maio. Foi o dia do nascimento de Marcelino Champagnat, Fundador dos Irmãos Maristas. Nasceu no dia 20 de maio de 1789. Agradecer a Deus o Instituto Marista e os meus 50 anos de vida neste Instituto foi parte da minha peregrinação hoje ao Santuário de Santa Rita. E como acabo de chegar do grupo de Maristas, Leigos e Irmãos, que fazem uma experiência de formação para integrar as NOVAS COMUNIDADES INTERNACIONAIS PARA UM NOVO COMEÇO, não deixei também de os confiar à intercessão de Santa Rita. Para que também eles e elas possam ser “contemplativos na ação” ajudando a trazer o Reino de Deus à terra, lá onde forem colocados.

Marcelino Champagnat era batizado logo no dia a seguir ao seu nascimento, dia 21 de maio. Que foi o dia da morte de Santa Rita em 1447. Outra coincidência que me levou na agradecer a Deus o meu batismo, ao mesmo tempo que lhe pedia que vivesse sempre segundo o que o batismo pede a todos os batizados: sermos cristãos comprometidos e empenhados numa intensa vida espiritual e na transformação do mundo. E lembrava a equipa de Pastoral dos Batismos na qual trabalhei um ano na paróquia de Ermesinde. Lembrava-os na oração dando graças a Deus pelo seu empenho na paróquia e na Igreja como tal.

Um abraço amigo

Deixo-vos pois com um abraço amigo nesta hora da despedida. Se puder ver alguns de vós antes de partir para Itália, ficarei muito satisfeito. Se não for possível, como já estou a suspeitar que assim aconteça, fica a certeza da minha amizade e sobretudo da minha oração. Rezemos uns pelos outros que isso só nos faz bem.

E, já agora, se um dia aparecerdes por Roma, se vos puder ser útil terei muito gosto em sê-lo. Eu não estarei propriamente em Roma, como disse. E isso pode dificultar as coisas. Estarei em Manziana. Mas não é nenhuma distância que não se possa fazer, sobretudo estando livre das atividades do Centro. Sendo possível, repito, terei todo o gosto em vos ser útil.

No momento em que estou a tomar o comboio para Lisboa, para participar na reunião dos provinciais maristas da Europa, deixo-vos o meu abraço amigo. Falava também de oração. Neste momento, então, peço-vos uma oração por esta reunião que congrega os cinco provinciais europeus e alguns dos seus colaboradores. Há sempre decisões importantes a tomar, relacionadas com a presença marista na Europa. Nem sempre é fácil uma presença religiosa ou de Igreja, no velho continente, hoje em dia. Todos sabemos disso. Então mais intensa deve ser a nossa oração por este continente que deu tantos santos, tantos missionários, tantos sacerdotes, religiosos e religiosas, tantos leigos e leigas profundamente comprometidos com a Igreja e o mundo.
Sobre as decisões que tomaremos na nossa reunião de Provinciais europeus, peço que sejam decisões iluminadas pela sabedoria do Espírito de Deus que está em nós. Seja esta também a vossa oração por nós: que o Espírito Santo nos ilumine e ilumine as decisões a ser tomadas. Muito obrigado.

Teófilo

Post-Scriptum

Já que falamos de rosas ainda, lembrei-me de um poema que escrevi, exatamente há 32 anos aqui nesta mesma casa. Dizem que é um dos poemas mais bonitos que escrevi. Seja. Eu gosto muito dele também e, por incrível que pareça, esse poema serviu mesmo para um exame de Teologia dos Sacramentos, quando eu dava Dogmática em Nairobi. Os sacramentos situam-se nesse mundo dos símbolos. Os alunos tinham estudado a fundo os sacramentos. Ficaram talvez um pouco surpreendidos quando viram este exame que fazia mais apelo ao pensamento do que à memória.

A história do poema é muito simples. Em Ermesinde, alguns membros de um Grupo do movimento Oásis a que eu pertencia faziam um retiro. No último dia, quando já limpávamos a casa e nos preparávamos para a Eucaristia final, eu preparava umas notas para a homilia da missa. Alguém nessa altura entra onde eu preparava essas notas e em silêncio total coloca uma rosa no canto da minha mesa de trabalho. Dá-me um beijo e continua a limpeza que estava fazendo. Deixei de lado as notas da homilia e este poema tornou-se a homilia daquele dia. Reparem, estávamos em Setembro de 1984, Há 32 anos! Eu não pensei nas rosas de Santa Rita. Nem sei se conhecia a lenda, nessa altura! Mas aquele gesto tão simples e tão cheio de carinho inspirou-me esse poema. Está publicado, com o respetivo exame (umas respostas possíveis), no meu livro Bilhetes para Deus, Vol. IV, pp 266-304.

Rosa-símbolo

Já não és somente a rosa perfumada
Que não resistiu
À força das mãos que te colheram.
Agora, um gesto ou dois,
Como tantos outros, quase de nada,
Mil esperanças acenderam!

Rosa-símbolo ali colocada,
Em discreta presença,
A transbordar de carinho.
Gesto que salva,
Que abre caminho,
Que te fez canto e poema,
Mais rica do que um diadema!

Rosa-beleza que ilumina o olhar
Cheio de alegria e luz.
Rosa mais pequena do que um verso,
Adquiriste outra dimensão…
A dimensão quase do universo,
Com todo o encanto que seduz!

Rosa-reveladora,
Vestida de primavera,
Tu és tudo o que floresce e canta,
Melodia de uma manhã, inspiradora,
Ou talvez mistério que se levanta,
E que é preciso apenas contemplar!

Rosa-quase ilusão
Nas tuas pétalas ainda levantadas!
Elas vão morrer, mas não morrerão
Os mundos que elas uniram.
Milagre tão simples, tão cheio de beleza,
Que algum coração amigo
Desenhou ali, no canto da minha mesa.


Teófilo

Ermesinde, 4 de Setembro de 1984

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