HOMENAGEM Prof. Dr. João Lobo Antunes
HOMENAGEM
Prof. Dr. João Lobo Antunes
Dr. João Lobo Antunes |
Sofrimento,
medicina e o transcendente. Homenagem a João Lobo Antunes
Para
um dos colóquios Igreja em Diálogo, sobre "Religião e (In)felicidade",
também convidei o professor João Lobo Antunes, para falar precisamente sobre
"Sofrimento, medicina e o transcendente". Mandou-me o texto da
conferência, que ainda não publiquei. O que aí fica é um brevíssima síntese,
que é, julgo, a melhor homenagem que posso prestar ao amigo, médico de fama
mundial, professor ilustre, homem da cultura, mestre da escrita, humanista,
cristão.
"O
papel da espiritualidade no contexto do sofrimento e da doença é tema que entre
nós habitualmente se mantém circunscrito ao domínio de uma visão confessional
da medicina ou da saúde em geral. Devo dizer que este é tópico que me tem
ocupado regularmente ao longo dos anos, estimulado, quem sabe, por uma angústia
metafísica que periodicamente emerge."
Na
busca de uma definição de espiritualidade, poderíamos dizer de modo simples que
"é uma atitude ou uma procura de um sentido intimamente ligado à relação
que cada um de nós tem com o transcendente", sendo de notar que "a
espiritualidade não está necessariamente ligada à religiosidade. Esta implica a
adesão pessoal a uma crença ou à prática de uma religião organizada. De facto,
pode admitir-se que um não crente tenha a sua forma própria de
"espiritualidade", ou seja, uma relação com valores
transcendentes".
"A
prática da medicina bem como a experiência da doença levantam problemas
críticos de significado e sentido - questões fundamentais, como apontou Renée
Fox, sobre os "porquês da dor, do sofrimento e da angústia, os limites da
vida humana, e a morte, e as suas relações com o mal, o pecado e a
injustiça"."
Tudo
indicaria que os avanços da ciência e, nomeadamente, da medicina, a explosão da
realidade virtual e do ciberespaço, teriam "como consequência, como se de
um jogo de forças antagónicas se tratasse, um recuo na crença religiosa. De
facto, o oposto parece verificar-se, e o interesse pelos debates sobre a
relação entre ciência e fé tem crescido de forma surpreendente."
A
sociedade portuguesa é hoje "uma sociedade laicizada e avessa à discussão
dos problemas da religião e da espiritualidade, como se não tivéssemos
recuperado do jacobinismo dos princípios do século passado. Vale a pena citar,
como contraste, o que se passa com os Estados Unidos, onde 80% da população
acredita no poder da religião e 77% dos doentes hospitalizados desejam que os
médicos lhes falem sobre estes temas. Sublinhe-se ainda que pelo menos 30
faculdades de Medicina têm cursos sobre espiritualidade, religião e
saúde".
Referindo
longamente esta temática, sublinhou a atenção crítica necessária na abordagem
"científica" destas questões. Mas disse que "a ideia de que a
espiritualidade e a religião trazem benefícios à saúde deveria não chocar os
mais cépticos. Sir William Osler, o fundador da medicina clínica tal como hoje
a entendemos, já falava em 1910 na faith that heals."
"O
que não se pode questionar é que a doença é, como alguém disse, um
acontecimento espiritual que nos agarra pelo corpo e pela alma e que a ambos
perturba". E, percebendo que "a visão reducionista e mecanicista da
moderna medicina já não é satisfatória", "doentes e médicos começam a
realizar o valor de elementos como a fé, a esperança ou a compaixão, esta
última tão inexplicavelmente ausente do discurso bioético contemporâneo". Como afirmou o filósofo A. Heschel,
"to heal a person, we must first be a person".
Concluiu que "a
espiritualidade na prática médica exige grande virtude, coragem, perseverança e
o que alguém chamou de "fidelidade criativa". E, evidentemente,
esperança, pois, como dizia S. Paulo, "é na esperança que somos
salvos"."
E
não resistiu a contar duas breves histórias da clínica. "Já há largos
anos, num domingo de Verão, telefonou-me um colega neurologista, dizendo-me que
tinha uma menina internada num hospital particular de Lisboa, pedindo-me que a
observasse. Perguntei-lhe se era uma situação urgente e ele respondeu-me que
não lhe parecia, pelo que foi combinado eu visitá-la depois do jantar. Eu
estava em Cascais, num almoço à beira de uma piscina, num animado convívio
social. Subitamente, sem qualquer motivo, decidi interromper o almoço e parti
para Lisboa. Quando cheguei, a menina tinha entrado em coma naquele momento, e
foi salva por uma intervenção urgente. Ela é hoje mãe de uma Madalena. A
segunda história passou-se, estava eu ainda em Nova Iorque, e regressava de
avião de um congresso quando, a caminho de casa, decidi parar no meu hospital.
Lá também, por uma qualquer razão que ainda hoje me escapa, desloquei-me ao
hospital de crianças anexo ao meu edifício para ver um rapazinho que operara
dias antes. No momento em que entro no quarto ele fez uma paragem respiratória
de que é salvo in extremis por uma nova intervenção. Tenho contado
estas histórias (e poderia acrescentar outras) a alunos, internos e
colaboradores. Não me atrevo a atribuir-lhes um sentido transcendente, mas
também não as reduzo a situações de simples acaso ou sorte. Digo apenas que é
preciso estar atento a uma voz interior e responder sem hesitações ao seu
comando. Para tal, é preciso, pois, estar sempre à escuta, como se conta do jovem
profeta Samuel."
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