SÍRIA Um grito em nome de Alepo


SÍRIA
Um grito em nome de Alepo
25.11.2016 às 8h00
DESTRUIÇÃO. Duas meninas a caminho da escola 
numa área de Alepo controlada pelos rebeldes
ZEIN AL-RIFAI / AFP / GETTY IMAGES

Esteve quase quatro anos em missão na Síria e foi testemunha de uma “convivência
única” entre populações muçulmanas e cristãs. Hoje, a irmã argentina Maria de
Guadalupe sente que é seu dever partilhar a sua experiência para alertar, sobretudo,
para a situação em Alepo. Falámos com ela, aprendemos com ela, sofremos com ela

Na era da comunicação global e das grandes conquistas tecnológicas, nem sempre a
verdade está à distância de um clique. E o conflito na Síria é um exemplo disso.
“Estamos na era da comunicação, mas é lamentável que não se saiba a verdade sobre
o que se passa em Alepo.
O que se vende no Ocidente é uma mentira, baseada em muita desinformação e
ignorância”, acusa a irmã Maria de Guadalupe, de 43 anos, em entrevista ao Expresso.
E concretiza: “A perseguição aos cristãos é desconhecida do resto do mundo”.

MISSIONÁRIA. A irmã Maria de Guadalupe esteve 
em missões no Médio Oriente durante 15 anos
Missionária da Família Religiosa do Verbo Encarnado, congregação  sediada em
Buenos Aires — cidade onde nasceu o Papa Francisco —, Guadalupe esteve quase
quatro anos em missão em Alepo, a segunda maior cidade síria e que hoje se encontra
praticamente dizimada pela guerra. “Em termos humanos, Alepo foi a pior situação
que alguma vez presenciei. Mas foi também, sem dúvida alguma, a minha melhor
missão. Se voltasse atrás no tempo, pediria para ir para a Síria.”
Em Alepo, antes da guerra rebentar, a irmã testemunhou uma convivência entre
muçulmanos e cristãos como nunca antes vira na região. “Nunca vi nada igual em 15
anos de missões no Médio Oriente.” A Síria era um país excecional, tinha um Estado
laico e “Alepo era uma cidade desenvolvida, muito próspera, com um excelente nível
académico - era uma cidade empresarial”, que rivalizava com Damasco, a capital.
Pessoas de diferentes religiões eram colegas de trabalho e amigos
ALEPO. Dirigindo um coro infantil na Catedral do 
Menino Jesus, no bairro de Shahba, onde vivem e 
trabalham os missionários da congregação da 
irmã Guadalupe
FOTO FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO
Maria de Guadalupe chegou a Alepo em inícios de 2011, quando as manifestações
populares da Primavera Árabe ainda não tinham saído às ruas da Síria e ninguém
antevia a guerra sangrenta que se seguiria. Antes, tinha estado dois anos na cidade
palestiniana de Belém (Cisjordânia) e 12 em Alexandria, no Egito.
Durante esse período, deslocou-se a vários países na região (Jordânia, Síria, Iraque e
Tunísia) para trabalhar junto das comunidades cristãs locais. Quando lhe foi proposto
que escolhesse o seu próximo destino, a missionária escolheu Alepo, pensando que
iria poder desfrutar de um período mais calmo do que aquele que vivera no Egito.
“Nunca pensei estar preparada para permanecer num país em guerra, mas eu já lá

estava quando a guerra começou. Apercebi-me que tinha de ficar, pois Deus mo pedia.
O meu superior sempre disse que temos de ir para onde ninguém queira ir. Esse lugar
é Alepo”, cidade que está, desde há anos, a ser disputada pelo exército nacional,
forças rebeldes laicas e jiadistas.
Guadalupe vivia na parte ocidental da cidade, controlada pelas tropas do Presidente
Bashar al-Assad. “É um erro dizer que a Síria está a sofrer uma guerra civil. O país foi
invadido por grupos armados estrangeiros, terroristas, que desde o início perseguem
abertamente os cristãos e qualquer outro grupo que não corresponda ao seu
fundamentalismo.”
Acusa o Ocidente de defender a liberdade, a democracia e os direitos humanos e, ao
mesmo tempo, de financiar o terrorismo em nome de interesses económicos.
COMUNIDADE Além do trabalho pastoral na catedral,
a congregação tem   uma residência para estudantes
 universitárias oriundas de fora de Alepo
                FOTO FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO

Quando o Daesh se fez anunciar na Síria — estabelecendo em Raqqa a sua capital —, a
missionária ainda estava no país. Mas nunca o enfrentou diretamente. “Se tivesse tido
algum contacto com o Daesh não estaria cá hoje para contar”, diz, fazendo o gesto de
quem corta a garganta. “Não há maneira de conversar com esta gente. O Daesh
pratica uma intolerância total para com os cristãos. O sequestro ou a morte são 
inevitáveis.”
A irmã garante que apesar da devastação e das atrocidades cometidas em Alepo e
noutras cidades da Síria, as populações resistem o mais possível a deixar as suas casas
ou o país. Fugir é sempre a última opção, “o êxodo é forçado”. É resultado do
desespero. Estima-se que, desde março de 2011, cerca de 11 milhões de sírios tenham
fugido de casa. Muitos saíram mesmo do país.
Guadalupe saiu da Síria em finais de 2014. Hoje, sente que, de certa forma, a sua
missão em Alepo ainda não terminou. Viaja por vários países, dando o seu testemunho
para que os cristãos perseguidos, com quem se preocupa em especial, tenham uma
voz que os defenda. Uma gota no oceano, mas uma gota necessária.
Chegou a Portugal no passado dia 18, a convite da fundação pontifícia Ajuda à Igreja
que Sofre (ver AQUI). Esteve no Porto, no Estoril, em Lisboa e esta quinta-feira à
noite dará o seu testemunho em Almada, na Igreja Paroquial de São Tiago, pelas
21h15
PORTUGAL. Na quarta-feira, a irmã Guadalupe deu o
seu testemunho no Colégio de São Tomás, em Lisboa
FOTO FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO

Para quem não a irá ouvir, ela apela: “Não podemos ser indiferentes ao que se pass
em Alepo. Temos de rezar por eles e pela paz. E temos de cooperar, contribuindo para
a paz com o nosso próprio comportamento. Somos seres humanos e vivemos em
comunidade. Se eu faço o bem, isso repercute-se na sociedade e contribui para a paz.
Se eu vivo em pecado, vício, egoísmo, isso repercute-se na sociedade e contribui para
a guerra. O nosso comportamento não é indiferente. Através dele, cooperamos com a guerra ou com a paz.”

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