COMUNICAÇÃO SOCIAL Dia Mundial das Comunicações Sociais: «A verdade vos tornará livres (Jo 8, 32)».
COMUNICAÇÃO SOCIAL
Dia Mundial das Comunicações Sociais: «A verdade vos tornará livres (Jo 8, 32)». Fake
news e jornalismo de paz
Jan 24, 2018 - 11:46
Mensagem do Papa Francisco para o LII Dia Mundial das Comunicações Sociais
Queridos irmãos e irmãs!
No projeto de Deus, a comunicação humana é uma modalidade essencial para
viver a comunhão. Imagem e semelhança do Criador, o ser humano é capaz de
expressar e compartilhar o verdadeiro, o bom e o belo. É capaz de narrar a sua
própria experiência e o mundo, construindo assim a memória e a compreensão dos
acontecimentos. Mas, se orgulhosamente seguir o seu egoísmo, o homem pode usar
de modo distorcido a própria faculdade de comunicar, como o atestam, já nos
primórdios, os episódios bíblicos dos irmãos Caim e Abel e da Torre de Babel
(cf. Gn 4, 1-16; 11, 1-9). Sintoma típico de tal distorção é a alteração da
verdade, tanto no plano individual como no coletivo. Se, pelo contrário, se
mantiver fiel ao projeto de Deus, a comunicação torna-se lugar para exprimir a
própria responsabilidade na busca da verdade e na construção do bem. Hoje, no
contexto duma comunicação cada vez mais rápida e dentro dum sistema digital, assistimos
ao fenómeno das «notícias falsas», as chamadas fake news: isto convida-nos a
refletir, sugerindo-me dedicar esta Mensagem ao tema da verdade, como aliás já
mais vezes o fizeram os meus predecessores a começar por Paulo VI (cf. Mensagem
de 1972: «Os instrumentos de comunicação social ao serviço da Verdade»).
Gostaria, assim, de contribuir para o esforço comum de prevenir a difusão das
notícias falsas e para redescobrir o valor da profissão jornalística e a
responsabilidade pessoal de cada um na comunicação da verdade.
Que há de falso nas «notícias falsas»?
A expressão fake news é objeto de discussão e debate. Geralmente diz
respeito à desinformação transmitida online ou nos media tradicionais. Assim, a
referida expressão alude a informações infundadas, baseadas em dados
inexistentes ou distorcidos, tendentes a enganar e até manipular o
destinatário. A sua divulgação pode visar objetivos predefinidos, influenciar
opções políticas e favorecer lucros económicos.
A eficácia das fake news fica-se a dever, em primeiro lugar, à sua natureza
mimética, ou seja, à capacidade de se apresentar como plausíveis. Falsas, mas
verosímeis, tais notícias são capciosas, no sentido que se mostram hábeis a
capturar a atenção dos destinatários, apoiando-se sobre estereótipos e
preconceitos generalizados no seio dum certo tecido social, explorando emoções
imediatas e fáceis de suscitar como a ansiedade, o desprezo, a ira e a
frustração. A sua difusão pode contar com um uso manipulador das redes sociais
e das lógicas que subjazem ao seu funcionamento: assim os conteúdos, embora
desprovidos de fundamento, ganham tal visibilidade que os próprios desmentidos
categorizados dificilmente conseguem circunscrever os seus danos.
A dificuldade em desvendar e erradicar as fake news é devida também ao
facto de as pessoas interagirem muitas vezes dentro de ambientes digitais
homogéneos e impermeáveis a perspetivas e opiniões divergentes. Esta lógica da
desinformação tem êxito, porque, em vez de haver um confronto sadio com outras
fontes de informação (que poderia colocar positivamente em discussão os
preconceitos e abrir para um diálogo construtivo), corre-se o risco de se
tornar atores involuntários na difusão de opiniões tendenciosas e infundadas. O
drama da desinformação é o descrédito do outro, a sua representação como
inimigo, chegando-se a uma demonização que pode fomentar conflitos. Deste modo,
as notícias falsas revelam a presença de atitudes simultaneamente intolerantes
e hipersensíveis, cujo único resultado é o risco de se dilatar a arrogância e o
ódio. É a isto que leva, em última análise, a falsidade.
Como podemos reconhecê-las?
Nenhum de nós se pode eximir da responsabilidade de contrastar estas
falsidades. Não é tarefa fácil, porque a desinformação se baseia muitas vezes
sobre discursos variegados, deliberadamente evasivos e subtilmente enganadores,
valendo-se por vezes de mecanismos refinados. Por isso, são louváveis as
iniciativas educativas que permitem apreender como ler e avaliar o contexto
comunicativo, ensinando a não ser divulgadores inconscientes de desinformação,
mas atores do seu desvendamento. Igualmente louváveis são as iniciativas
institucionais e jurídicas empenhadas na definição de normativas que visam
circunscrever o fenómeno, e ainda iniciativas, como as empreendidas pelas tech
e media company, idóneas para definir novos critérios capazes de verificar as
identidades pessoais que se escondem por detrás de milhões de perfis digitais.
Mas a prevenção e identificação dos mecanismos da desinformação requerem
também um discernimento profundo e cuidadoso. Com efeito, é preciso desmascarar
uma lógica, que se poderia definir como a «lógica da serpente», capaz de se
camuflar e morder em qualquer lugar. Trata-se da estratégia utilizada pela
serpente – «o mais astuto de todos os animais», como diz o livro do Génesis
(cf. 3, 1-15) – a qual se tornou, nos primórdios da humanidade, artífice da
primeira fake news, que levou às trágicas consequências do pecado,
concretizadas depois no primeiro fratricídio (cf. Gn 4) e em inúmeras outras
formas de mal contra Deus, o próximo, a sociedade e a criação. A estratégia
deste habilidoso «pai da mentira» (Jo 8, 44) é precisamente a mimese, uma
rastejante e perigosa sedução que abre caminho no coração do homem com
argumentações falsas e aliciantes. De facto, na narração do pecado original, o
tentador aproxima-se da mulher, fingindo ser seu amigo e interessar-se pelo seu
bem. Começa o diálogo com uma afirmação verdadeira, mas só em parte: «É verdade
ter-vos Deus proibido comer o fruto de alguma árvore do jardim?» (Gn 3, 1). Na
realidade, o que Deus dissera a Adão não foi que não comesse de nenhuma árvore,
mas apenas de uma árvore: «Não comas o [fruto] da árvore do conhecimento do bem
e do mal» (Gn 2, 17). Retorquindo, a mulher explica isso mesmo à serpente, mas
deixa-se atrair pela sua provocação: «Podemos comer o fruto das árvores do
jardim; mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse:
“Nunca o deveis comer nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis”»
(Gn 3, 2-3). Esta resposta tem sabor a legalismo e pessimismo: dando crédito ao
falsário e deixando-se atrair pela sua apresentação dos factos, a mulher
extravia-se. Em primeiro lugar, dá ouvidos à sua réplica tranquilizadora: «Não,
não morrereis» (3, 4). Depois a argumentação do tentador assume uma aparência
credível: «Deus sabe que, no dia em que comerdes [desse fruto], abrir-se-ão os
vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal» (3, 5).
Enfim, ela chega a desconfiar da recomendação paterna de Deus, que tinha em
vista o seu bem, para seguir o aliciamento sedutor do inimigo: «Vendo a mulher
que o fruto devia ser bom para comer, pois era de atraente aspeto (…) agarrou
do fruto, comeu» (3, 6). Este episódio bíblico revela assim um facto essencial para
o nosso tema: nenhuma desinformação é inofensiva; antes pelo contrário, fiar-se
daquilo que é falso produz consequências nefastas. Mesmo uma distorção da
verdade aparentemente leve pode ter efeitos perigosos.
De facto, está em jogo a nossa avidez. As fake news tornam-se
frequentemente virais, ou seja, propagam-se com grande rapidez e de forma
dificilmente controlável, não tanto pela lógica de partilha que carateriza os
meios de comunicação social como sobretudo pelo fascínio que detêm sobre a
avidez insaciável que facilmente se acende no ser humano. As próprias
motivações económicas e oportunistas da desinformação têm a sua raiz na sede de
poder, ter e gozar, que, em última instância, nos torna vítimas de um embuste
muito mais trágico do que cada uma das suas manifestações: o embuste do mal,
que se move de falsidade em falsidade para nos roubar a liberdade do coração.
Por isso mesmo, educar para a verdade significa ensinar a discernir, a avaliar
e ponderar os desejos e as inclinações que se movem dentro de nós, para não nos
encontrarmos despojados do bem «mordendo a isca» em cada tentação.
«A verdade vos tornará livres» (Jo 8, 32)
De facto, a contaminação contínua por uma linguagem enganadora acaba por
ofuscar o íntimo da pessoa. Dostoiévski deixou escrito algo de notável neste
sentido: «Quem mente a si mesmo e escuta as próprias mentiras, chega a pontos
de já não poder distinguir a verdade dentro de si mesmo nem ao seu redor, e
assim começa a deixar de ter estima de si mesmo e dos outros. Depois, dado que
já não tem estima de ninguém, cessa também de amar, e então na falta de amor,
para se sentir ocupado e distrair, abandona-se às paixões e aos prazeres
triviais e, por culpa dos seus vícios, torna-se como uma besta; e tudo isso
deriva do mentir contínuo aos outros e a si mesmo» (Os irmãos Karamazov, II,
2).
E então como defender-nos? O antídoto mais radical ao vírus da falsidade é
deixar-se purificar pela verdade. Na visão cristã, a verdade não é uma
realidade apenas conceptual, que diz respeito ao juízo sobre as coisas,
definindo-as verdadeiras ou falsas. A verdade não é apenas trazer à luz coisas
obscuras, «desvendar a realidade», como faz pensar o termo que a designa em
grego: aletheia, de a-lethès, «não escondido». A verdade tem a ver com a vida
inteira. Na Bíblia, reúne os significados de apoio, solidez, confiança, como
sugere a raiz ‘aman (daqui provém o próprio Amen litúrgico). A verdade é aquilo
sobre o qual nos podemos apoiar para não cair. Neste sentido relacional, o
único verdadeiramente fiável e digno de confiança sobre o qual se pode contar,
ou seja, o único «verdadeiro» é o Deus vivo. Eis a afirmação de Jesus: «Eu sou
a verdade» (Jo 14, 6). Sendo assim, o homem descobre sempre mais a verdade,
quando a experimenta em si mesmo como fidelidade e fiabilidade de quem o ama.
Só isto liberta o homem: «A verdade vos tornará livres» (Jo 8, 32).
Libertação da falsidade e busca do relacionamento: eis aqui os dois
ingredientes que não podem faltar, para que as nossas palavras e os nossos
gestos sejam verdadeiros, autênticos e fiáveis. Para discernir a verdade, é
preciso examinar aquilo que favorece a comunhão e promove o bem e aquilo que,
ao invés, tende a isolar, dividir e contrapor. Por isso, a verdade não se
alcança autenticamente quando é imposta como algo de extrínseco e impessoal;
mas brota de relações livres entre as pessoas, na escuta recíproca. Além disso,
não se acaba jamais de procurar a verdade, porque algo de falso sempre se pode
insinuar, mesmo ao dizer coisas verdadeiras. De facto, uma argumentação
impecável pode basear-se em factos inegáveis, mas, se for usada para ferir o
outro e desacreditá-lo à vista alheia, por mais justa que apareça, não é
habitada pela verdade. A partir dos frutos, podemos distinguir a verdade dos
vários enunciados: se suscitam polémica, fomentam divisões, infundem resignação
ou se, em vez disso, levam a uma reflexão consciente e madura, ao diálogo construtivo,
a uma profícua atividade.
A paz é a verdadeira notícia
O melhor antídoto contra as falsidades não são as estratégias, mas as
pessoas: pessoas que, livres da ambição, estão prontas a ouvir e, através da
fadiga dum diálogo sincero, deixam emergir a verdade; pessoas que, atraídas
pelo bem, se mostram responsáveis no uso da linguagem. Se a via de saída da
difusão da desinformação é a responsabilidade, particularmente envolvido está
quem, por profissão, é obrigado a ser responsável ao informar, ou seja, o
jornalista, guardião das notícias. No mundo atual, ele não desempenha apenas
uma profissão, mas uma verdadeira e própria missão. No meio do frenesim das
notícias e na voragem dos furos, tem o dever de lembrar que, no centro da
notícia, não estão a velocidade em comunicá-la nem o impacto sobre a audiência,
mas as pessoas. Informar é formar, é lidar com a vida das pessoas. Por isso, a
precisão das fontes e a custódia da comunicação são verdadeiros e próprios
processos de desenvolvimento do bem, que geram confiança e abrem vias de
comunhão e de paz.
Por isso desejo convidar a que se promova um jornalismo de paz, sem
entender, com esta expressão, um jornalismo «bonzinho», que negue a existência
de problemas graves e assuma tons melífluos. Pelo contrário, penso num
jornalismo sem fingimentos, hostil às falsidades, a slogans sensacionais e a
declarações bombásticas; um jornalismo feito por pessoas para as pessoas e
considerado como serviço a todas as pessoas, especialmente àquelas – e no
mundo, são a maioria – que não têm voz; um jornalismo que não se limite a
queimar notícias, mas se comprometa na busca das causas reais dos conflitos,
para favorecer a sua compreensão das raízes e a sua superação através do
aviamento de processos virtuosos; um jornalismo empenhado a indicar soluções
alternativas às escaladas do clamor e da violência verbal.
Por isso, inspirando-nos numa conhecida oração franciscana, poderemos
dirigir-nos, à Verdade em pessoa, nestes termos:
Senhor, fazei de nós instrumentos da vossa paz.
Fazei-nos reconhecer o mal que se insinua em uma comunicação que não cria
comunhão.
Tornai-nos capazes de tirar o veneno dos nossos juízos.
Ajudai-nos a falar dos outros como de irmãos e irmãs.
Vós sois fiel e digno de confiança;
fazei que as nossas palavras sejam sementes de bem para o mundo:
onde houver ruído, fazei que pratiquemos a escuta;
onde houver confusão, fazei que inspiremos harmonia;
onde houver ambiguidade, fazei que levemos clareza;
onde houver exclusão, fazei que levemos partilha;
onde houver sensacionalismo, fazei que usemos sobriedade;
onde houver superficialidade, fazei que coloquemos interrogações
verdadeiras;
onde houver preconceitos, fazei que despertemos confiança;
onde houver agressividade, fazei que levemos respeito;
onde houver falsidade, fazei que levemos verdade.
Amen.
Vaticano, 24 de janeiro – Memória de São Francisco de Sales – do ano de
2018.
FRANCISCO
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