EUTANÁSIA* Código deontológico – não matar
O Parlamento prepara-se para
discutir, no dia 29 de maio, quatro Projetos de Lei que pretendem regular a
prática não punível da eutanásia. Os Jesuítas em Portugal entendem ser seu
dever tomar uma posição pública sobre esta questão. 24 Maio 2018
Um debate insuficiente
O Parlamento prepara-se para
discutir, no dia 29 de maio, quatro Projetos de Lei (PAN, BE, PEV e PS) que
pretendem regular a prática não punível da eutanásia em casos de lesão
incurável e de doença grave sem perspectiva de cura. Este debate surge na sequência
de uma Petição Pública dirigida à Assembleia da República em fevereiro de 2016,
assinada por diversas personalidades que pediam a “despenalização da morte
assistida”.
Era intenção dos seus
signatários alertar para o sofrimento e solidão que tantos experimentam na fase
terminal da vida. Sofrimento que, em caso algum, podemos julgar.
Com a legitimidade que lhe é
própria, a Assembleia da República acolheu este debate como resposta a um
documento assinado por um número significativo de cidadãos, mas consideramos
que a reflexão que se gerou na sociedade não foi suficientemente esclarecedora.
A pergunta que importa fazer é se o caminho preconizado pela petição e acolhido
pelos distintos Projetos de Lei é o que melhor responde à necessidade de
acompanhar quem se aproxima do final da vida. E quanto a isso a nossa convicção
é clara: não! O próprio Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida
(CNECV), organismo que mais se esforçou por dinamizar esta discussão, reconhece
no parecer
negativo dado ao Projeto de Lei do PAN que existe “uma séria falta
de informação por parte dos cidadãos” e que é necessário formar melhor as
pessoas para as “decisões em final de vida.”
Há uma enorme confusão de
conceitos que não será dissipada com o debate do dia 29. Da nossa parte,
estamos disponíveis para continuar a participar de modo franco e aberto no
diálogo, mas lamentamos que haja, da parte de alguns deputados, a tentação de
se fecharem à sociedade civil e de se precipitarem a apoiar uma lei sobre a
qual muitos portugueses não estão esclarecidos, não compreendendo sequer as
suas consequências.
A pergunta que importa fazer é
se o caminho preconizado pela petição e acolhido pelos distintos Projetos de
Lei é o que melhor responde à necessidade de acompanhar quem se aproxima do
final da vida. E quanto a isso a nossa convicção é clara: não!
O engano da autonomia
Na exposição dos motivos dos
diferentes projetos há uma palavra que funciona como refrão: autonomia.
Contudo, a ideia de autonomia que ali se pressupõe não é própria de um Estado
Social de Direito, alicerçado em relações de cooperação e interdependência, mas
de um mundo em que cada um decide isolado e por si. No limite, essa forma de
entender o ser humano inviabiliza a própria ideia de sociedade e mesmo a
necessidade de um Estado Social em que somos corresponsáveis uns pelos outros.
Um argumento apresentado por
todos os Projetos de Lei é que um Estado que impeça a eutanásia é um Estado
paternalista. Mas há aqui um engano. Insistindo que cabe ao doente, de forma
livre e sem pressões, a decisão quanto à eutanásia, todas as propostas
legislativas deixam na mão do médico a decisão final quanto à legitimidade do
pedido feito pelo doente. É ao médico que cumpre avaliar se estão reunidos os
requisitos para que a eutanásia tenha lugar. Se um doente recorrer de um
parecer negativo dado por um médico, será sempre a um outro médico ou a uma
comissão de especialistas que caberá a decisão final de dar ou não seguimento à
eutanásia ou ao suicídio assistido. O “paternalismo” que o Estado recusa para
si mesmo, parece querer impô-lo aos médicos e especialistas, em contradição com
o juramento
de Hipócrates pelo qual os médicos afirmam: “Guardarei respeito
absoluto pela Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso
dos meus conhecimentos médicos contra as leis da Humanidade.”
Acto médico – Código
deontológico – contra leis da Humanidade
A concretização de um pedido
de eutanásia ou de suicídio assistido será um ato médico que passará pela
administração de fármacos por parte de um médico ou enfermeiro (eutanásia) ou
pela ingestão por parte do doente, com assistência médica (suicídio assistido),
de algo com o objetivo de lhe tirar a vida. Não está em causa desligar algum
suporte artificial de vida ou interromper tratamentos desnecessários, mas
provocar ativa e intencionalmente a morte. Ora isto contraria a opinião
expressa por vários bastonários da ordem dos médicos, tanto junto do Presidente
da República, como numa carta assinada em 2016 em que afirmavam: “Em nenhuma
circunstância e sob nenhum pretexto, é legítimo à sociedade procurar induzir os
médicos a violar o seu código deontológico e o seu compromisso com a vida.”
Efetivamente, o código
deontológico publicado em 2016 proíbe ao médico, no nº 2 do
seu artigo 65, a possibilidade de colaborar num processo de eutanásia. Terão os
deputados o direito de forçar os médicos a alterar os seus códigos? Quererão
ser imunes ao apelo de bastonários e de outros profissionais de saúde?
Consideramos que não faz
sentido que os deputados coloquem nas mãos de um médico a responsabilidade de
decidir se, diante de uma doença terminal, o argumento “não querer ser um peso
para os filhos” ou “não querer sofrer por os ver sofrer” é um motivo suficiente
para dar a morte ou para a negar. Para qualquer profissional esta escolha
constituirá certamente um dilema.
Em vez de se oferecer
verdadeira autonomia, estar-se-á a proporcionar maior isolamento e solidão.
Ainda que o desejo de muitos dos que defendem a eutanásia seja aliviar o
sofrimento, importa lembrar que o caminho que mais previne o sofrimento é o que
evita o isolamento. Não acreditamos que a eutanásia seja esse caminho.
Ainda que o desejo de muitos
dos que defendem a eutanásia seja aliviar o sofrimento, importa lembrar que o
caminho que mais previne o sofrimento é o que evita o isolamento. Não
acreditamos que a eutanásia seja esse caminho.
Nunca somos sozinhos
Na argumentação que enquadra
os Projetos de Lei é reconhecida a importância do reforço dos cuidados
paliativos. Registe-se positivamente o esforço já efetuado no desenvolvimento
de um plano
estratégico para os cuidados paliativos. Acreditamos que dará um
contributo positivo para que mais pessoas tenham acesso a estes cuidados, independentemente
da sua condição económica e social. O que atualmente ainda não é uma realidade.
Esta razão, por si só, recomendaria alguma prudência na aprovação da lei da
eutanásia. Mais uma vez, cai o argumento da liberdade e autonomia dos doentes,
usado pelos defensores da aprovação da lei, uma vez que no atual Sistema de
Saúde, isso não parece estar garantido de modo equitativo.
Um dos grandes intentos dos
que defendem a despenalização da eutanásia é o de que a morte seja “assistida”.
Mas será que uma equipa médica e um grupo de amigos e familiares reunidos à
hora marcada para verem o doente ser morto ou matar-se garantem verdadeira
assistência?
Importa que acompanhemos mais
os processos de doença, que se criem apoios efetivos para os cuidadores que optam
por cuidar de familiares doentes, que não aconteça que um familiar trabalhador
que acompanhe por mais de 15 dias um doente terminal enfrente sérios
constrangimentos.
Importa apostar em cuidados e
processos que ajudem o doente a reconhecer a sua dignidade como pessoa. Não se
trata de impor um “modelo cultural” ou de pensamento, trata-se de recusar a
ideia de que apenas a existência como produtores ou consumidores nos confere
dignidade. O reconhecer-se como digno depende mais de poder terminar a sua vida
em paz, reconciliado, em relação com os outros do que em poder “escolher
sozinho” a hora e o modo da morte. Todos estes fatores contribuem para a
qualidade humana da relação com a pessoa doente e ajudam a diminuir a perceção
do seu sofrimento.
Numa sociedade cada vez mais
envelhecida, o nosso empenho tem de estar em criar condições para quem
envelhece, em ajudar quem sofre lesões irreversíveis ou adoece gravemente a
sentir-se acompanhado e protegido. Estes são os verdadeiros sinais de progresso
humano e civilizacional. Importa que essa oportunidade seja dada a todos,
especialmente aos que não têm recursos próprios. Como sociedade, é de tudo isto
que não nos podemos demitir. Involuntariamente, aprovar a eutanásia pode ser um
convite a esta demissão e, também por isso, não o devemos consentir.
O que é determinante é que se
desenvolva uma cultura em que o normal seja perguntar a cada um: “como desejas
viver até ao fim?”
Melhorar cuidados paliativos
Os cuidados paliativos
pressupõem promover a qualidade de vida e acompanhar os doentes integrados na
sua rede familiar e de relações. Esse acompanhamento é feito desde o momento do
diagnóstico e não apenas quando já se esgotaram as medidas curativas. Esses
mesmos cuidados paliativos incluem a possibilidade de acompanhar famílias
enlutadas. Ainda assim, sabemos que a mais perfeita rede de cuidados paliativos
não responderá a todas as necessidades e não reduziria a zero os pedidos de
eutanásia. Toda a medicina é limitada e incapaz de resolver todos os problemas.
Mas o melhor modo de
acompanhar os processos de morte é recordar que não somos sozinhos, nem
morremos sozinhos. A vida humana implica dependência e interdependência e por
isso não faz sentido que uma lei possa sugerir a cada um: “decide sozinho
quando queres morrer”. O que é determinante é que se desenvolva uma cultura em
que o normal seja perguntar a cada um: “como desejas viver até ao fim?” in Jesuitas em Portugal
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