EUROPA/identidade? Erosão da identidade cultural é ameaça maior do que perigos externos, diz «Nobel» da Teologia
EUROPA/identidade?
Erosão da identidade cultural é ameaça maior do que perigos externos,
diz «Nobel» da Teologia
Mai 21, 2019 - 7:46
Rémi Brague sublinha
importância de respeitar conceção cristã do ser humano, esteio do mundo
ocidental
O filósofo e académico francês Rémi Brague, vencedor do ‘Prémio Ratzinger’ em
2012, defendeu em Lisboa que a erosão da própria identidade cultural é uma
ameaça maior para a Europa do que perigos externos.
“O fulcro da questão é a
conceção de ser humano que está subjacente à cultura europeia”, que não foi
inventada, mas foi “fortemente influenciada” pela visão cristã do homem “criado
à imagem de Deus” e com uma “dignidade especial”, disse em entrevista conjunta
à Renascença e Agência ECCLESIA.
O docente emérito das
Universidades de Sorbonne e de Munique considerou que “ninguém, com exceção dos
cristãos, é capaz de dizer porque é que os seres humanos devem ter essa dignidade”,
distinguindo-os de outros seres que também têm elementos de vida social.
Rémi Brague, tido como um dos
intelectuais e académicos católicos mais respeitados na Europa, entende que as
ameaças ao Velho Continente derivam de uma “ameaça fundamental”, ou seja, a
incapacidade de os seres humanos se respeitarem a si mesmos.
O filósofo refere que as
ameaças internas são “ainda mais perigosas”, como acontece com os populismos
atuais, criando fortalezas de supostas “identidades reais”, com base políticas
ou religiosas.
Se perdermos este sentimento de legitimidade, como povo
europeu, não seremos capazes de produzir antídotos a ameaças externas”.
O especialista sublinha que a
“aventura da Europa é uma aventura de expansão”, com capacidade histórica de
“autocrítica”; nesse sentido, tem alertado para o que chama de “marcionismo
cultural” – uma referência ao século II, quando uma corrente cristã
ligada ao nome de Marcion queria cortar os laços com o Antigo Testamento –,
valorizando a “consciência da continuidade” em contraponto à “ideia estúpida de
que não há nada a aprender com os outros”.
“Há uma tendência, uma
propensão ao longo de toda a história cultural da Europa, de deitar fora o que
veio antes, de renunciar à dimensão positiva da tradição”, observa.
O auto francês realça que as
pessoas que “puxam os cordelinhos” devem fomentar esta “aventura europeia”,
para que o continente não perca dimensão global.
“No presente, se olharmos para
a forma como as ditas elites europeias veem o mundo, a ideia básica é que somos
os mais simpáticos, os mais inteligentes, os mais bonitos, e todos os outros
têm de imitar o que fazemos”, lamenta.
Por outro lado, existe muita
“curiosidade” sobre o que vem de fora e pouca capacidade para estudar o que é
“realmente interessante”.
Brague declara que aquilo que
tornou a Europa possível foi “o facto de a cultura europeia, nas suas elites,
ter escolhido colocar em prática as propostas da filosofia”, distinguindo entre
o que é “bom” e o que é “meu”, enquanto propriedade.
“Desde que mantenhamos esta
distinção em mente, conseguimos criar ferramentas” para distinguir as coisas
pelo seu “valor”, independentemente da sua origem, precisa.
Especializado em filosofia
medieval e religiões abraâmicas, Rémi Brague observa que Deus está para lá das
“representações” que se fazem dele e que as mesmas palavras ou os mesmos nomes,
na Bíblia e no Corão, têm conteúdos “distintos”.
“As histórias que contamos
sobre eles são muito diferentes”, insiste.
Como exemplo, refere que no
Islão a misericórdia é fundamental, mas numa conceção de Deus “misericordioso
em relação às pessoas que lhe obedecem”.
“A ideia de que Deus nos
poderia perdoar, enquanto ainda estamos a tentar ou mesmo a querer
desobedecer-lhe” é totalmente estranha à religião islâmica.
“Isto torna o diálogo
inter-religioso particularmente traiçoeiro”, adverte.
O trabalho académico do
‘Nobel’ de Teologia tem-se centrado no estudo da cultura e da civilização
ocidental, com obras também sobre a religião, identidade nacional e direito.
Para Brague, o Islão pode ser
uma ameaça à Europa se os europeus não colocarem diante dos migrantes e
refugiados muçulmanos os seus valores próprios, “com força intelectual, moral e
espiritual”.
“A verdadeira ameaça é, pela
sua natureza, interior”, é a “falta de confiança, de acreditar em si”, por
parte dos europeus, indica.
Se a cultura europeia for poderosa, intelectual e
espiritualmente, qualquer ameaça exterior pode ser enfrentada, ainda que não
eliminada”.
A respeito da chamada crise dos
refugiados, o entrevistado distingue os deveres de ajuda imediata do direito a
comportar-se a “regras que não são europeias, pela sua natureza ou origem”.
“Na Europa, sê europeu”,
aponta.
O docente universitário alerta
para o risco de os países europeus “sugarem” os jovens mais qualificados dos
países pobres, “com os seus conhecimentos e energia”, para assegurar um melhor
nível de vida para os seus próprios cidadãos, evitando o “trabalho sujo”.
Não tenho a certeza de que receber todas estas pessoas
seja algo tão moralmente adequado como parece”.
No contexto do seu trabalho e
pesquisa, o filósofo já recebeu várias distinções, incluindo o prestigiado
Prémio Ratzinger, em 2012; no ano seguinte foi feito cavaleiro da Legião de
Honra francesa.
Rémi Brague manifesta “grande
admiração” pelo Papa emérito Bento XVI e a sua dimensão intelectual: “Podíamos
dizer exatamente onde é que se concordava com ele e onde é que se discordava”.
O filósofo mostra-se
“perplexo”, por outro lado, com algumas intervenções do Papa Francisco sobre
temas em que considera haver falta de aprofundamento e declarações “ingénuas”.
“Compreendo que haja pessoas
que se sintam inseguras”, admite.
Questionado sobre a liberdade
na Europa da atualidade, o membro da Academia Católica da França diz que esta
equivale ao que seria, no mundo antigo a “liberdade dos escravos, fazer o que
se quer”.
“A verdadeira liberdade
significa obediência a algo como a lei, um código de honra, a consciência”,
contrapõe.
O autor usa a imagem do táxi
que circula sem passageiros, “livre”: “Está vazio, não sabe para onde tem de ir
e pode ser ocupado por qualquer pessoa que o consiga pagar”.
Rémi Brague visita Lisboa para
proferir uma conferência sobre o futuro da Europa, marcada para as 18h30 de
hoje, no auditório Cardeal Medeiros da Universidade Católica Portuguesa, em
Lisboa. Filipe Avillez (Renascença) e
Octávio Carmo (Ecclesia)
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