PANDEMIA Guterres-nova solidariedade por L’O.R.
PANDEMIA Guterres-nova solidariedade
por L’O.R.
As ameaças globais exigem uma nova solidariedade
Entrevista ao
Secretário-Geral das Nações unidas António Guterres
Por L'
Osservatore Romano / Andrea Monda
4
Junho, 2020
D. R. |
Profunda gratidão ao Papa
Francisco pelo seu apoio a um cessar-fogo mundial
«A pandemia deve ser uma
campainha de alarme. As ameaças globais mortais exigem uma nova unidade e
solidariedade». Afirmou o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres
nesta entrevista exclusiva aos media do Vaticano.
Recentemente o senhor lançou um apelo
à paz no mundo atingido pela pandemia. Uma iniciativa que mais uma vez se associa à do Papa Francisco
— com o qual se encontrou no Vaticano no final do ano passado e transmitiu
uma mensagem de vídeo — que nunca deixa de apelar pelo fim de todas as guerras.
O senhor disse: a fúria do vírus ilustra a
loucura da guerra. Na sua opinião, por que é difícil fazer passar esta
mensagem?
Antes de mais, gostaria de
reiterar a minha profunda gratidão ao Papa Francisco pelo seu apoio ao meu
apelo global a um cessar-fogo e ao trabalho das Nações Unidas. O seu
compromisso global, a sua compaixão e os seus apelos à unidade reafirmam os
valores fundamentais que norteiam o nosso trabalho: reduzir o sofrimento humano
e promover a dignidade humana.
Quando solicitei um
cessar-fogo, a minha mensagem às partes envolvidas em conflitos no mundo
inteiro foi simples: os combates devem cessar para que possamos concentrar-nos
no nosso inimigo comum, a Covid-19.
Até agora, o apelo recebeu o
apoio de 115 governos, organizações regionais, mais de 200 grupos da sociedade
civil e outros líderes religiosos. Dezasseis grupos armados comprometeram-se a
pôr termo à violência. Além disso, milhões de pessoas assinaram online um
pedido de apoio.
Mas a desconfiança continua a
ser grande e é difícil traduzir estes compromissos em ações que façam a
diferença na vida das pessoas atingidas pelo conflito.
Os meus representantes e
enviados especiais estão a trabalhar incansavelmente em todo o mundo, com a
minha participação direta quando é necessária, para transformar as intenções
expressas em cessar-fogos concretos.
Continuo a exortar as partes
em conflito, e todos aqueles que podem influenciá-las, a colocarem a saúde e a
segurança das pessoas em primeiro lugar.
Gostaria também de mencionar
outro apelo que fiz e que considero essencial: um apelo à paz doméstica. Em
todo o mundo, com a propagação da pandemia, assistimos inclusive a um aumento
preocupante da violência contra as mulheres e as jovens.
Pedi aos governos, à sociedade
civil e a quantos no mundo podem ajudar, que se mobilizem para melhor proteger
as mulheres. Pedi também aos líderes religiosos de todos os credos que condenem
inequivocamente todos os atos de violência contra mulheres e jovens, e defendam
os princípios fundamentais da igualdade.
Há alguns meses, muito antes do surto da pandemia, o senhor falou do medo como se fosse a
mercadoria mais fácil de vender. Trata-se de uma questão que agora, nas últimas
semanas, corre o risco de ser ainda mais amplificada. Como pensa contrastar,
sobretudo neste período difícil, o sentimento de medo que se difunde entre as
pessoas?
A pandemia de Covid-19 não é
apenas uma emergência de saúde global.
Nas últimas semanas, tem
havido um aumento das teorias da conspiração e dos sentimentos xenófobos. Em
alguns casos, foram atacados jornalistas, profissionais da saúde ou defensores
dos direitos humanos apenas por desempenharem o seu trabalho.
Desde o início desta crise,
tenho apelado à solidariedade entre sociedades e países. A nossa resposta deve
basear-se nos direitos humanos e na dignidade humana.
Exortei igualmente as
instituições educativas a concentrarem-se no alfabetismo digital e exortei a
mídia, especialmente as sociedades de informação, a fazerem muito mais para
denunciar e eliminar conteúdos racistas, misóginos ou danosos, em conformidade
com o direito internacional em matéria de direitos humanos.
Os líderes religiosos têm um
papel crucial a desempenhar na promoção do respeito recíproco nas suas
comunidades e não só. Ocupam uma posição adequada para desafiar mensagens
inexatas e prejudiciais e para encorajar todas as comunidades a promover a
não-violência e a rejeitar a xenofobia, o racismo e qualquer forma de intolerância.
O medo é
certamente alimentado pelas falsas notícias das
quais de recente o senhor denunciou uma propagação crescente. Como podemos
combater a desinformação sem correr o risco de, em nome desta batalha, ofuscar
direitos e liberdades fundamentais?
As pessoas no mundo querem
saber o que fazer e a quem se dirigir para obter conselhos. Em vez disso, são
obrigadas a gerir uma epidemia de desinformação que, se correr mal, pode pôr
vidas em perigo.
Presto homenagem aos
jornalistas e a quantos controlam a informação, face à grande quantidade de
histórias e postes enganosos publicados nas redes sociais.
Em apoio deste compromisso,
lancei uma iniciativa das Nações Unidas em resposta às comunicações,
denominadas Verified, que visam fornecer às pessoas informações precisas e
baseadas em factos, encorajando simultaneamente soluções e solidariedade à
medida que passamos da crise para a retomada.
Os líderes religiosos também
têm um papel a desempenhar, utilizando as suas redes e capacidades de
comunicação para apoiar os governos na promoção das medidas de saúde pública
recomendadas pela Organização Mundial da Saúde — do distanciamento físico à boa
higiene — e para desmentir informações e boatos falsos.
Entre as informações infundadas que chegam diariamente ao público
encontram-se, nestes dias, muitas
críticas às agências da Onu, como por exemplo à Organização Mundial da Saúde
(Oms). Qual é a sua opinião sobre isto?
Ao lamentarmos as vidas
perdidas devido ao vírus, ficamos angustiados porque haverá muitas mais, especialmente
em lugares menos capazes de fazer face a uma pandemia.
Olhando para trás, a evolução
da pandemia e a resposta internacional serão essenciais. Mas neste momento a
Organização Mundial da Saúde e todo o sistema da Onu correm contra o tempo para
salvar vidas.
Estou particularmente
preocupado com a falta de solidariedade adequada com os países em vias de
desenvolvimento — tanto para lhes proporcionar aquilo de que necessitam para
responder à pandemia de Covid-19 como para fazer face ao dramático impacto
económico e social sobre os mais pobres do mundo.
A Organização Mundial da Saúde
e todo o sistema das Nações Unidas estão plenamente mobilizados para salvar
vidas, prevenir a carestia, aliviar a dor e planear a retomada.
Definimos um plano de resposta
humanitária global de 7,6 biliões de dólares para as populações mais
vulneráveis, incluindo os refugiados e as pessoas deslocadas internamente. Até
agora, os doadores ofereceram quase um bilião de dólares e eu continuo a
envidar esforços para assegurar que este plano seja totalmente financiado.
As nossas equipas estão a
trabalhar em diferentes países, em coordenação com os governos, para mobilizar
financiamentos, ajudar os ministérios da saúde a estarem preparados e apoiar
medidas económicas e sociais, desde a segurança alimentar e a educação a partir
de casa até às transferências monetárias e muito mais.
As nossas operações de paz
continuam a cumprir os seus importantes mandatos de proteção e a apoiar os
processos de paz e políticos.
As redes de distribuição da
Onu foram disponibilizadas aos países em vias de desenvolvimento, com milhões
de kits para testes, respiradores e máscaras cirúrgicas que chegam agora a mais
de uma centena de países. Organizámos voos solidários para levar mais
fornecimentos e operadores a dezenas de países da África, Ásia e América
Latina.
E, desde o início, mobilizei
as competências de que a família das Nações Unidas dispõe para fornecer uma
série de relatórios e informações políticas a fim de oferecer análises e
conselhos para proporcionar uma resposta eficaz e coordenada por parte da
comunidade internacional. (https://www.un.org/en/coronavirus/un-secretary-general)
Vivemos numa época em que os ataques ao multilateralismo se
multiplicam. É necessário, na sua
opinião, reforçar a confiança nas instituições internacionais? E como se
pode fazer isto?
A colaboração e a contribuição
de todos os Estados — incluindo os mais poderosos — é essencial não só para
combater a Covid-19, mas também para enfrentar os desafios da paz e da
segurança que se apresentam. São também essenciais para ajudar a criar as
condições para uma retomada efetiva no mundo desenvolvido e em vias de
desenvolvimento.
O vírus demonstrou a nossa
fragilidade global. E esta fragilidade não se limita aos nossos sistemas de
saúde. Atinge todas as áreas do nosso mundo e das nossas instituições.
A fragilidade dos esforços
globais coordenados é salientada pela nossa incapacidade de responder à crise
climática, pelo risco crescente de proliferação nuclear, pela nossa
incapacidade de nos reunirmos para melhor regular a rede.
A pandemia deve ser uma
campainha de alarme. As ameaças globais mortais exigem uma nova unidade e
solidariedade.
O senhor congratulou-se publicamente com a iniciativa europeia de desenvolver a vacina contra a Covid-19. No
entanto, precisamente a descoberta da vacina pode fazer nascer em alguns a
tentação de ocupar uma posição dominante no seio da comunidade
internacional. Como se pode evitar este perigo? E como fazer com que, antes da
vacina estar disponível, sejam experimentados os tratamentos que se revelem
eficazes?
Num mundo interligado, ninguém
está seguro enquanto não o estiverem todos.
Esta foi, em resumo, a
essência da minha mensagem no lançamento do “act Accelerator” — ou seja,
colaboração global para acelerar o desenvolvimento, produção e acesso
equitativo a novos diagnósticos, terapias e vacinas para a Covid-19.
Deve ser considerada um bem
público. Não uma vacina ou curas para um país, uma região ou para metade do
mundo — mas uma vacina e curas acessíveis, seguras, eficazes, facilmente
administráveis e universalmente disponíveis para todos, em toda a parte. Esta
vacina deve ser a vacina do povo.
Como pode acontecer que na luta contra
o vírus existam países de primeira e de segunda categoria? Contudo,
corre-se o risco de que a pandemia aumente no mundo o fosso entre ricos e pobres. Como se pode evitar isto?
A pandemia está a trazer à luz
desigualdades em todo o mundo. Desigualdades económicas, no acesso aos serviços
de saúde e muito mais.
O número de pessoas pobres
poderá aumentar para 500 milhões — o primeiro aumento em trinta anos.
Não podemos permitir que isto
aconteça e, por conseguinte, continuo a apelar a um pacote global de ajudas que
tenha o valor de pelo menos 10% da economia mundial.
Os países mais desenvolvidos
podem fazê-lo com os próprios recursos, e alguns já começaram a aplicar essas
medidas. Mas os países em vias de desenvolvimento precisam de um apoio
substancial e urgente.
O Fundo Monetário
Internacional já aprovou o financiamento de emergência para um primeiro grupo
de países em vias de desenvolvimento. O Banco Mundial indicou que, com os
recursos novos e existentes, pode conceder um financiamento de 160 biliões de
dólares nos próximos 15 meses. O g20 apoiou a suspensão dos pagamentos da
dívida dos países mais pobres.
Aprecio plenamente estas
medidas, que podem proteger as pessoas, o emprego e trazer benefícios para o
desenvolvimento. Contudo, não é suficiente e será importante considerar medidas
adicionais, incluindo a redução da dívida, para evitar crises financeiras e
económicas prolongadas.
Há quem diga que depois da pandemia o mundo não voltará a ser o mesmo.
Qual poderá ser o futuro das Nações
Unidas no mundo de amanhã?
A retomada da pandemia oferece
oportunidades para conduzir o mundo por um caminho mais seguro, mais saudável,
sustentável e inclusivo.
As desigualdades e lacunas na
proteção social que surgiram de uma forma tão dolorosa deverão ser
enfrentadas. Teremos também a oportunidade de colocar em primeiro plano as
mulheres e a igualdade de género para ajudar a construir uma resiliência a
futuros choques.
A retomada também deve
caminhar ao lado da ação pelo clima.
Pedi aos governos para
assegurem que os fundos destinados a revitalizar a economia sejam utilizados
para investir no futuro, e não no passado.
O dinheiro dos contribuintes
deve ser utilizado para acelerar a descarbonização de todos os aspetos da nossa
economia e dar prioridade à criação de empregos verdes. Chegou o momento de
impor uma taxa sobre o carvão e obrigar os poluidores a pagar pela sua
poluição. As instituições financeiras e os investidores devem ter plenamente em
conta os riscos climáticos.
Os objetivos do
desenvolvimento sustentável e o Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas
continuam a ser o nosso modelo.
Chegou o momento de sermos
determinados. Determinados a derrotar a Covid-19 e a sair da crise, construindo
um mundo melhor para todos.
Andrea
Monda
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