ECUMENISMO Cardeal Kurt Koch e o ecumenismo dos mártires
ECUMENISMO perseguições
Cardeal Kurt Koch e o ecumenismo dos
mártires
O
ecumenismo do sangue nos coloca diante de um grande desafio, resumido pelo Papa
Francisco com esta pergunta eloquente: "Se o inimigo nos une na morte,
quem somos nós para nos dividir na vida?"
Cidade do Vaticano
Para recordar a Encíclica «Ut
unum sint» do Papa João Paulo II, o presidente do Pontifício Conselho para
a Promoção da Unidade dos Cristãos, cardeal Kurt Koch, escreveu o artigo “O
ecumenismo dos mártires”, publicano no L’Osservatore Romano.
Há um quarto de século, o Papa
João Paulo II publicou sua incisiva Encíclica incisiva sobre o compromisso
ecumênico Ut unum sint. O então cardeal Joseph
Ratzinger, expressando seu apreço, observou que, com tal documento, o Papa
havia conseguido "com toda a força de sua paixão ecumênica" despertar
a urgência da busca pela unidade dos batizados "na consciência da Igreja.
"(Joseph Ratzinger – Benedetto XVI, La fede rifugio dell’umanità. Le
14 encicliche di Giovanni Paolo II, in Giovanni Paolo II. Il mio amato
predecessore, Cinisello Balsamo, 2007, 33-49, cit. 431).
Com Ut unum sint, o Papa
pretendia encorajar os fiéis a acolherem o apelo à unidade dos cristãos que
havia sido lançado com grande força pelo Concílio Vaticano II. Trinta anos após
a conclusão do Concílio, João Paulo II dirigiu sua particular atenção a um
fenômeno que, a seu ver, estava conferindo uma renovada energia à exortação
expressa pelo Concílio e que colocava a Igreja diante de seu dever de assumir e
de traduzir na realidade concreta os pedidos conciliares. Esse fenômeno era o
"testemunho corajoso de tantos mártires do nosso século", incluindo
também membros de outras Igrejas e Comunidades eclesiais que não estão em plena
comunhão com a Igreja Católica. Nisto o Papa viu "a prova mais
significativa de que todo o elemento de divisão pode ser vencido e superado com
o dom total de si próprio à causa do Evangelho" (Ut
unum sint,
n. 1).
Um martirológio comum
Referindo-se a tal testemunho já
na introdução da Encíclica, o Papa recorda o doloroso fato de que, no final do
segundo milênio e no início do terceiro, a cristiandade voltou a ser uma Igreja
de mártires, em uma medida sem precedentes. Os mártires de hoje são de fato
mais numerosos do que aqueles que sofreram as perseguições contra os cristãos
nos primeiros séculos. Oitenta por cento dos que são perseguidos por causa de
sua fé hoje são cristãos. A fé cristã é a religião mais perseguida no mundo de
hoje. Esse triste fenômeno nos recorda que a Igreja Cristã é sempre uma Igreja
de martírio, onde o batismo em nome do Deus uno e trino torna-se radical no
batismo de sangue. Como os mártires são um fenômeno não marginal, mas central
na Igreja, o martírio é uma experiência fundamental do cristianismo e faz parte
da natureza e da missão da Igreja desde o seu início.
Para o Papa João Paulo II é
particularmente importante o reconhecimento do fato de que todas as Igrejas e
as comunidades eclesiais têm seus mártires. Hoje os cristãos não são
perseguidos porque pertencem a uma comunidade cristã específica, porque são ortodoxos
ou católicos, luteranos ou anglicanos, mas porque são cristãos. O martírio é
ecumênico e se deve falar de um verdadeiro ecumenismo dos mártires. No entanto,
apesar de sua dramaticidade, ele contém também uma mensagem de esperança,
segundo a qual "Numa visão teocêntrica, nós, cristãos, já temos um Martirológio comum",
que mostra "como, a um nível profundo, Deus manteve entre os batizados a
comunhão na exigência suprema da fé, manifestada com o sacrifício da
vida." (Ut unum sint, n. 84).
No ecumenismo dos mártires, o
Papa João Paulo II já reconhece uma unidade fundamental entre nós cristãos e
nutre a esperança de que os mártires do céu nos ajudem a reencontrar a plena
unidade. Enquanto nós cristãos e nós Igrejas nesta Terra estamos ainda em uma
comunhão imperfeita, os mártires na glória celeste já vivem em uma plena e
completa comunhão. O sangue que os mártires derramaram por Cristo não nos
separa, mas nos une. O ecumenismo dos mártires confirma mais uma vez a
convicção da Igreja primitiva, que Tertuliano resumiu afirmando que o sangue
dos mártires é semente de novos cristãos: "Sanguis martyrum semen
christianorum". Da mesma forma, também nós podemos viver hoje na
esperança de que o sangue de assim tantos mártires de nossos dias será a
semente da plena unidade ecumênica do único Corpo de Cristo, dilacerado por
tantas divisões. Podemos estar certos que o sofrimento de assim tantos cristãos
cria uma unidade mais forte do que as diferenças que ainda dividem as Igrejas
cristãs e que, no sangue dos mártires, já nos tornamos um.
O ecumenismo dos mártires é uma
das razões mais profundas do forte empenho ecumênico de João Paulo II, como ele
mesmo enfatizou após a celebração da Via Sacra no Coliseu, na Sexta-feira Santa
em 1994: «Estamos unidos no ambiente dos mártires, não podemos não estar
unidos».
Para João Paulo II, o ecumenismo
dos mártires é a forma mais credível de ecumenismo de todos os tempos: "O
ecumenismo dos santos, dos mártires, é talvez o mais convincente. O communio
sanctorum fala com voz mais alta que os fatores de divisão" (Tertio millennio adveniente, n. 37).
Profundamente convencido disso, João Paulo II reconheceu e apreciou sem nenhuma
hesitação como mártires, e portanto como testemunhas do cristianismo indiviso,
os cristãos de outras Igrejas e comunidades eclesiais que deram a vida pela sua
fé em Jesus Cristo.
A dimensão ecumênica do
martírio
A importância teológica da
prática, atualmente difundida na Igreja, do reconhecimento dos mártires
cristãos em outras comunidades eclesiais, fica evidente somente se levarmos em
consideração o fato de que, no curso da história, prevaleceu por longo tempo a
prática oposta. No passado, apenas o cristão que havia testemunhado a verdade
inalterada de Cristo com sua vida era reconhecido como mártir. Não se podia
presumir que uma adesão tão vital à plena verdade de Cristo pudesse existir
mesmo fora da Igreja Católica. Por consequência, não era possível aceitar o
martírio em outras comunidades cristãs. Já nos primeiros tempos do
cristianismo, somente as testemunhas da fé da Igreja Católica eram reconhecidas
como mártires, enquanto o sacrifício da própria vida em comunidades heréticas
era considerado sem valor. Durante os confrontos com os donatistas, por
exemplo, Cipriano e Agostinho insistiram no fato de que poderiam haver
verdadeiros mártires somente na Igreja Católica.
A interpretação do martírio
estreitou-se ulteriormente devido às sucessivas divisões na Igreja. Enquanto os
cristãos de várias Igrejas ofereciam a própria vida, demonstrando fidelidade à
denominação de pertença, a qualificação religiosa do martírio foi reconhecida
somente às testemunhas da fé da própria comunidade, e negada aos cristãos de
outras comunidades, mortos violentamente, embora todos interpretassem a morte
dos próprios mártires como testemunho dado a Cristo. Chegou-se a uma
confessionalização até mesmo maior do conceito de martírio com as lutas
confessionais e com as guerras entre religiões dos séculos XV e XVI, devido ao
fato de que os cristãos se matavam uns aos outros nas diversas comunidades
cristãs e reconheciam como mártires somente os próprios mortos.
Esta visão confessionalmente
limitada foi superada sobretudo com o Concílio Vaticano II, graças a um
renovado olhar para as Igrejas e comunidades eclesiais cristãs que não estão
ainda em plena comunhão com a Igreja Católica, mas com as quais "a Igreja
vê-se ainda unida" (Lumen gentium, n. 15).
O motivo desta ligação é
reconhecido pelo decreto sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio em
primeiro lugar no batismo, que estabelece um "vínculo sacramental da
unidade que liga todos os que foram regenerados por ele." (n. 22), e que
constitui aqueles em "estão numa certa comunhão, embora não perfeita, com
a Igreja católica." (n. 3). O decreto enfatiza, portanto, que muitos dos
"elementos ou bens com que, tomados em conjunto, a própria Igreja é
edificada e vivificada" podem existir “fora do âmbito da Igreja
católica", como "a palavra de Deus escrita, a vida da graça, a fé, a esperança
e a caridade e outros dons interiores do Espírito Santo e elementos
visíveis." (n. 3).
Entre esses elementos, a
constituição dogmática da Igreja Lumen gentium inclui de
maneira especial uma "verdadeira união no Espírito Santo", já que
mesmo nos cristãos não-católicos "ele opera com sua virtude santificadora
por meio de dons e graças e deu a alguns a força para chegar até mesmo ao
derramamento de sangue "(n. 15).
Graças a essas importantes
declarações do Concílio, a realidade do martírio também em outras Igrejas
cristãs foi reconhecida e apreciada. Sobre este fundamento conciliar, ainda
durante o Concílio, o santo Papa Paulo VI confirmou a visão ecumênica do
martírio quando, durante a 103ª Congregação Geral, canonizou os mártires de
Uganda honrando também os anglicanos que haviam sofrido os mesmos sofrimentos
que seus irmãos católicos.
O reconhecimento dos mártires
pertencentes a outras Igrejas e comunidades cristãs, juntamente com a sua
veneração comum, foi mais tarde um objetivo particularmente querido ao Papa
João Paulo II, que quis expressar a dimensão ecumênica do martírio sobretudo
com a celebração comum realizada no Coliseu no Jubileu do Ano 2000.
Naquela ocasião o Papa, na
presença de altos representantes de várias Igrejas e comunidades eclesiais,
recordou os mártires do século XX e ouviu os vários testemunhos de fé, entre os
quais o do metropolita ortodoxo Serafim, o do pastor protestante Paul Schneider
e do sacerdote católico Maximiliano Kolbe.
Tal celebração permitiu
experimentar na fé a profunda comunhão que une os cristãos nas várias Igrejas e
comunidades eclesiais, não obstante as diferenças e os obstáculos ainda
existentes.
De fato, na perseguição comum -
especialmente nos campos de concentração nazistas e nos gulags comunistas - os
cristãos e as comunidades eclesiais cresceram juntos, descobriram sua comunhão
na fé e estreitaram uma amizade ecumênica.
A continuidade da visão
ecumênica
No ecumenismo dos mártires, é
reconhecido o núcleo mais profundo do empenho ecumênico em favor da unidade da
Igreja. Podemos ser agradecidos que essa visão ecumênica do martírio tenha sido
levada em frente pelos sucessores do Papa João Paulo II na cátedra pontifícia.
Isso se aplica antes de tudo ao Papa Bento XVI, que sublinhou sobretudo a
dimensão cristológica do martírio, particularmente importante do ponto de vista
ecumênico.
De fato, "a força para
enfrentar o martírio" nasce da "profunda e íntima união com
Cristo". O martírio, portanto, não é "o resultado de um esforço
humano", mas "a resposta a uma iniciativa e a um chamado de
Deus", "um dom de sua graça, que torna capazes de oferecer a própria
vida por amor a Cristo e à Igreja e, assim ao mundo" (Catequese durante a Audiência Geral de 11
de agosto de 2010).
Visitando em 2008 a Basílica de
São Bartolomeu na Ilha Tiberina, dedicada à memória dos mártires do século XX,
o Papa Bento XVI destacou que "aparentemente parece que a violência, os
totalitarismos, a perseguição e a brutalidade cega se revelem mais fortes,
silenciando as vozes das testemunhas da fé, que podem humanamente aparecer como
derrotados na história", mas Jesus ressuscitado ilumina seu testemunho,
para que a força do amor e, portanto," a força que desafia e vence a
morte", se revele vitoriosa também na aparente derrota (Homilia de 7 de
abril de 2008). O martírio, também e sobretudo em sua dimensão ecumênica, é
realmente o mais alto testemunho de amor.
Também o Papa Francisco insistiu
diversas vezes na importância do ecumenismo dos mártires ou, como ele mesmo
definiu, "ecumenismo do sangue". Ele tem bem claro que os cristãos
hoje são perseguidos porque são cristãos. E foram sobretudo os próprios
perseguidores dos cristãos que nos fizeram compreender o sentido do ecumenismo
do sangue.
De fato, "para os
perseguidores, nós não estamos divididos, não somos luteranos, ortodoxos,
evangélicos, católicos ... Não! Somos um! Para os perseguidores, somos
cristãos! É o que importa. Este é o ecumenismo do sangue vivido hoje "(Discurso aos membros da Catholic
Fraternity of Charismatic Covenant Communities and Fellowship, 31 de
outubro de 2014).
O ecumenismo do sangue nos
coloca diante de um grande desafio, resumido pelo Papa Francisco com esta
pergunta eloquente: "Se o inimigo nos une na morte, quem somos nós para
nos dividir na vida?" (Discurso ao Movimento de Renovação no
Espírito Santo, 3 de julho de 2015).
Não é então uma vergonha que os
perseguidores dos cristãos tenham muitas vezes uma visão ecumênica melhor do
que os próprios cristãos? Eles sabem que nós cristãos somos, profundamente, um.
Para o Papa Francisco, o
reconhecimento dos mártires cristãos e a busca ecumênica pela unidade cristã
estão inseparavelmente ligados: "Os mártires pertencem a todas as igrejas
e o seu sofrimento constitui um" ecumenismo de sangue "que transcende
as divisões históricas entre os cristãos, chamando todos nós a promover a
unidade visível dos discípulos de Cristo" (Declaração Conjunta de Francisco e
Karekin II em Saint Etchmiadzin, República da Armênia, 26 de junho de 2016).
Os mártires pela unidade
dos cristãos
No ecumenismo dos mártires,
merecem uma menção especial os mártires cristãos que conscientemente deram suas
vidas pela sagrada causa da unidade dos cristãos. Como representante de muitos
outros, recordamos a figura de Max Metzger (cf. Jörg Ernesti, Ökumene
im Dritten Reich, Paderborn, 2007, 182-219), sacerdote incardinado na Arquidiocese
de Freiburg, que se empenhou em favor do movimento ecumênico já muito tempo
antes de sua prisão pelos nazistas. Ele compreendeu sua iminente execução como
uma oferta expiatória feita ao Senhor pela paz no mundo e pela unidade da
Igreja, duas causas que tinha particularmente a peito.
«Eu ficaria feliz se,
sacrificando minha vida, pudesse servir com eficácia a causa pela qual minha
vida aspirou sem certeza do sucesso" (Max Josef Metzger, Christuszeuge
em einer zerrissenen Welt. Briefe und Dokumente aus der Gefangenschaft 1934-1944, hrsg. von K.
Kienzler, Freiburg i. Br., 1994, 137). E pouco antes de sua execução,
escreveu as palavras que podem ser consideradas seu verdadeiro legado: «Agora o
Senhor quer que eu sacrifique minha vida. Eu pronuncio meu feliz sim à sua
vontade. Ofereci-lhe minha vida pela paz no mundo e pela unidade da Igreja. Ele
quer isso. Que a abençoe!" (Ibidem,
2018).
Max Josef Metzger é um daqueles
mártires cristãos sobre quem o Papa João Paulo II afirmou que "a comunhão
mais verdadeira que existe com Cristo que derrama seu sangue e, nesse
sacrifício, faz com que aqueles que antes estavam distantes agora se aproximem
(cf. Efésios 2, 13)» também permite uma comunhão mais intensa entre os cristãos
(Ut
unum sint, n. 84). Como Jesus foi ao encontro de sua morte "para
reunir os filhos de Deus que estavam dispersos" (João, 11, 52), assim as
figuras recordadas aceitaram conscientemente seu martírio pela unidade dos
cristãos. Não somente se tornaram guias credíveis em direção à unidade visível,
mas com eles foi completamente superada a visão redutiva do martírio, fechada
confessionalmente, sobretudo graças ao fato de que as Igrejas cristãs
reconhecem agora também os mártires em outras comunidades eclesiais e as
consideram testemunhas comuns. Nos mártires de todo o cristianismo, de fato,
"está presente o cristianismo indiviso e foi superada a divisão da
Igreja" (Eberhard Schockenhoff, Entschiedenheit und Widerstand.
Das Lebenszeugnis der Märtyrer, Freiburg i. Br., 2015, 157).
Nesta Una Sancta in vinculis, como
o teólogo protestante e mártir Dietrich Bonhoeffer definiu a estreita ligação
ecumênica entre os cristãos nas diversas Igrejas durante sua resistência ao
regime de violência nazista e comunista, encontramos a forma mais credível do
testemunho cristão comum, que é o fundamento da esperança na unidade do Corpo
de Cristo e o estímulo para continuar a construir com base na unidade que os
mártires colocaram para a unidade dos cristãos.
Já é evidente que o sofrimento
de assim tantos cristãos no mundo de hoje é uma experiência cristã comum e,
portanto, o ecumenismo de mártires e de sangue é o sinal mais convincente do
ecumenismo de hoje.
Nele encontramos um importante
legado ecumênico do Papa João Paulo II, que estava convencido de que o
ministério confiado ao Sucessor de Pedro era o ministério da unidade e se
realizava "em particular no campo ecumênico" (Varcare la soglia della speranza,
Milão, 1994, 168).
O Papa João Paulo II viveu na
estimulante esperança de que, após o primeiro milênio da história cristã, tempo
da Igreja indivisa, e após o segundo milênio, época de profundas divisões na
Igreja, tanto no Oriente quanto no Ocidente, o terceiro milênio tivesse a
grande tarefa de restaurar a unidade perdida dos cristãos. Um trabalho diante
do qual nos encontramos hoje.
O aniversário da Encíclica Ut
unum sint, prospectiva do Papa João Paulo II, publicada há vinte e cinco
anos, é uma profícua ocasião para retomar a consciência desse desafio e para
assumi-la com paixão, com renovada esperança na unidade de todos os batizados,
já a nós doada no ecumenismo dos mártires.
(L’Osservatore Romano)
20 janeiro 2020, 08:29
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