TRAÇOS DE UMA VIDA II * 60. Feliz por ser missionário por Pe. Armando Soares

TRAÇOS DE UMA VIDA II *
60. Feliz por ser missionário por Pe. Armando Soares
É este um tema interessante. São duas horas da manhã e o sono não pega. Li duas páginas de Martin Descalzo, o que me levou a escrever meu testemunho também, como padre e como missionário, com treze anos de Moçambique, no tempo da guerra civil, que não da guerra colonial.
Acho interessante o tema quando quase todos julgam os padres uns tristes, uns desiludidos, uns falhados.
Pois quero que sintam que sou um padre feliz, um missionário imensamente feliz. Sou aquele que muitos conhecem. Não sou planta de estufa ou passarinho de gaiola. Dos continentes, só ainda não tive a oportunidade de visitar a Oceania.
A África foi para mim terra de missão durante treze anos – dos mais maravilhosos da minha vida – trabalhando com a juventude, no belo e moderno Colégio São João de Brito, em Angoche, cujo proprietário era a Sociedade Missionária da Boa Nova, e que hoje é a escola Secundária e Angoche, Professor durante treze anos, três como Director e mais dois após a nacionalização. Feliz no meio da comunidade paroquial, feliz no Colégio no meio ads centenas de alunos em turnos de manhã, à tarde e cursos nocturnos, nas reuniões com grupos de jovens na igreja, alguns dos quais são hoje padres diocesanos.
Feliz apesar duma formação clássica recebida, mas que me deu uma grande capacidade de trabalho, quando hoje vejo há tanta gente nova que não pode com uma gata pelo rabo! Sou feliz num mundo que parece odiar os padres, que diz mal deles, que os julga disfarçados no trajar e pouco comunicativos no falar, mandões e não sei que mais. Mas não ando pela rua a apregoar que sou feliz, ou com um letreiro escrito nas costas.
Antigamente o padre era odiado pelos anticlericais, porque era gente importante. Só se odeia o que é importante e que vale a pena. Hoje encontramos mais facilmente o desprezo, a desvalorização e sobretudo a ignorância e a indiferença.
O clero baixou de divisão, baixou na sociedade. Foi bom ter deixado de ser “soba” da terra e de pertencer ao “grupo dos notáveis”. Não perdemos nada. Na consideração do povo, a Igreja está acima de qualquer outra Instituição com mais de 70% da confiança dos portugueses. E isso é que dá raiva a muita gente!
A onda de secularização pós-conciliar fez perder a identidade sacerdotal. Alguns terão ficado mais deslumbrados com o amor de uma rapariga do que com o fogo apagado da sua vocação. Custa suportar a solidão, mas também poder esta a condição humana. Custa abandonar o sacerdócio por desilusão, por sensação de inutilidade ou por mediocridade própria da vida. Transformou-se a crise das pessoas em crise do clero. Falava-se mais de um padre que abandonava para casar do que de cem que continuavam felizes e fiéis à sua missão e aos seus compromissos. Tenho pena de leigos e amigos que “sofrem” porque o padre não pode casar. Merecem o perdão e e compreensão pela ignorância e talvez pelos maus juízos que Cristo condena. É uma questão de liberdade e opção.
Nós os padres, ousámos, sim, deixar de ser “corvos” ou “bichos raros”, inserindo-nos na vida do povo, misturados com o povo para caminharmos com as pessoas lado a lado contagiando-nos, por vezes, é certo, da tristeza que devora o homem contemporâneo. Nem se fala de “democracia” palavra que hoje anda por demais inquinada e não tem qualquer sentido quando estão em jogo os princípios do reino de Deus e os valores evangélicos. Quem não é praticante e é ignorante das coisas da religião católica será melhor que se cale e fale apenas das coisas que conhece. Nem digam dos padres “coitadinhos” porque o celibato foi opção livre e compromisso pessoal.
E começaram a baixar as ordenações sacerdotais. Quando fui para o seminário, aos dez anos, tinha modelos de sacerdotes com vidas cheias, repletas de felicidade. Queria ser como eles! Que bom! Hoje, é mais difícil um jovem escolher uma carreira em que vai ganhar menos que um ajudante de pedreiro e em que não vê a felicidade daqueles que a seguem.
A tarefa da minha Igreja, que amo muito – padres, religiosos, religiosas e leigos – tem de ser devolver a alegria de sermos felizes. Apesar de termos de ir contra a corrente duma civilização eivada de pessimismo e da cultura do vazio, mergulhada na angústia, e que julga mal considerando que o maior problema dos padres é não casar. Todo o padre livremente aceitou o celibato. Ninguém o obrigou. Nem a Igreja, nem o Papa, nem a comunidade. Decorre naturalmente de ser discípulo de Cristo na comunidade.
Sinto-me feliz porque vivo o que amo e o que escolhi. Sou padre porque o quero ser e sempre fui desde os 23 anos, em que fui ordenado. Amo deveras a barca da Igreja que, apesar das suas brechas, nunca se afundará. Tenho muitos amigos, muita gente de todas as idades, que me ajuda a ser feliz: no trabalho, na contemplação, no descanso, nas viagens em grupos de Amigos abertos a toda a gente capaz de uma amizade sincera e construtiva, e vivo na força de Jesus Cristo e do Espírito, que +é a força da tranquilidade e da paz.
Sou um padre e um missionário feliz. Espero que ninguém tenha raiva de mim, pois então ficaria triste, mas continuaria feliz. In NA FORÇA DA VIDA p. 195 P. Armando Soares * Em 2006

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