Entrevista ao Papa. por AURA MIGUEL.15.09.15. "Tenho confiança nos políticos jovens. Há um problema mundial que é a corrupção" 14 Set, 2015 - 09:00 • Aura Miguel , no Vaticano
ENTREVISTA EXCLUSIVA
Entrevista
ao Papa.
"Tenho
confiança nos políticos jovens. Há um problema mundial que é a corrupção"
14 Set, 2015 - 09:00 • Aura Miguel , no Vaticano
Em entrevista exclusiva à Renascença, o Papa disse que as pessoas estão
desiludidas com a "corrupção a todos os níveis". Acredita que o
"grande desafio da Europa é voltar a ser a mãe Europa" e apela ao
acolhimento dos refugiados. Pede que a catequese "não seja teórica" e
que a Igreja saia de si mesma. Acredita que Fátima faz de Portugal um país
"privilegiado" e faz uma revelação: "Nunca conheci um português
mau." Leia e ouça a entrevista na íntegra.
Ouça a entrevista na íntegra ao Papa Francisco
Para um Papa que vem do “fim do mundo”, como olha para Portugal e para os
portugueses?
Em Portugal, só estive uma vez no aeroporto, há anos, quando vinha para
Roma, num avião da Varig que fazia escala em Lisboa. Por isso, só conheço o aeroporto.
Mas conheço muitos portugueses. E, no Seminário de Buenos Aires, havia muitos
empregados, emigrantes portugueses, gente boa, que tinha muita familiaridade
com os seminaristas. E o meu pai tinha um colega de trabalho português.
Lembro-me do seu nome, Adelino, bom homem. E uma vez conheci uma senhora
portuguesa, com mais de 80 anos, que me deixou boa impressão. Quer dizer, nunca
conheci um português mau.
No seu discurso aos bispos
portugueses, além de elogiar o povo português e olhar para a Igreja com
serenidade, o Santo Padre manifesta duas preocupações: uma em relação aos
jovens e outra em relação à catequese. O Santo Padre usa uma imagem, dizendo
que “os vestidos da primeira comunhão já não servem aos jovens”, mas que há
“certas comunidades que insistem em vestir-lhos”. Qual é o problema?
É uma maneira de dizer. Os jovens são mais informais e têm o seu próprio
ritmo. Temos de deixar que o jovem cresça, temos de o acompanhar, não o deixar
sozinho, mas acompanhá-lo. E saber acompanhá-lo com prudência, saber falar no
momento oportuno, saber escutar muito. Um jovem é inquieto. Não quer que o
incomodem e, nesse sentido, pode-se dizer que “o vestido da primeira comunhão
não lhes serve”. As crianças, pelo contrário, quando vão comungar, gostam do
vestido da primeira comunhão. É uma ilusão. Os jovens têm outras ilusões que,
muitas vezes, são muito boas, mas há que respeitar, porque eles mesmos não se
entendem, porque estão a mudar, estão a crescer, estão à procura, não é? Por
isso, é preciso deixar o jovem crescer, há que o acompanhar, respeitar e
falar-lhe muito paternalmente.
Porque, ao mesmo tempo, há uma
exigência a propor, mas essa exigência, muitas vezes, não é atractiva!
Por isso, há que procurar aquilo que atrai um jovem e exigir-lho. Por
exemplo, um caso concreto: se você propõe a um jovem – e vemos isto por todo o
lado – fazer uma caminhada, um acampamento ou fazer missão para outro sítio, ou
por vezes ir a um “cotolengo” [obra fundada por sacerdote italiano de
acolhimento de doentes com graves deficiências múltiplas, abandonadas pelas
famílias e em situação de risco] para cuidar dos doentes, durante uma semana ou
quinze dias, entusiasma-se porque quer fazer algo pelos outros. Está envolvido.
“Involucrado”?
Sim, fica por dentro, compromete-se. Não olha a partir de fora. Envolve-se,
ou seja, compromete-se.
Então, porque é que não fica?
Porque está a caminhar.
E qual é o desafio que a Igreja,
então, deve enfrentar? O Santo Padre também falou de uma catequese, que muitas
vezes permanece teórica e onde falta esta capacidade de propor o encontro…
Pois é importante que a catequese não seja puramente teórica. Isso não
serve. A catequese é dar-lhes doutrina para a vida e, portanto, tem de incluir
três linguagens, três idiomas: o idioma da cabeça, o idioma do coração e o
idioma das mãos. E a catequese deve entrar nesses três idiomas: que o jovem
pense e saiba qual é a fé, mas que, por sua vez, sinta com o seu coração o que
é a fé e, por sua vez, faça coisas. Se falta à catequese uma destas três
línguas, destes três idiomas, não avança. Três linguagens: pensar o que se
sente e o que se faz, sentir o que se pensa e o que se faz, fazer o que se
sente e o que se pensa.
Escutando vossa Santidade, isto
parece óbvio, mas, olhando à volta – sobretudo na velha Europa, na velha
cristandade – não é assim. O que é que falta? Mudar a mentalidade? Como se faz?
Mudar a mentalidade, não sei, porque não conheço tudo, não é? Mas é verdade
que, a metodologia catequética, às vezes, não é completa. Há que procurar uma
metodologia da catequese que junte as três coisas: as verdades que se devem
crer, o que se deve sentir e o que se faz, o que se deve fazer, tudo junto.
(582)
Santidade, para o centenário das
aparições de Nossa Senhora de Fátima, nós esperamos por si em Portugal. Três
Papas já nos visitaram (João Paulo II por três vezes). O Senhor, que ama muito
a Virgem, o que espera da sua visita em 2017?
Bom, vamos lá esclarecer as coisas. Eu tenho vontade de ir a Portugal para
o centenário. Em 2017 também se cumprem 300 anos do encontro da Imagem da
Virgem de Aparecida.
…. uma data estereofónica, em dois lados! (risos)
... por isso, também estou com vontade de lá ir e já
prometi lá ir. Quanto a Portugal, disse que tenho vontade de ir e gostaria de
ir. É mais fácil ir a Portugal, porque podemos ir e voltar num só dia, um dia
inteiro, ou, quanto muito, ir um dia e meio ou dois dias. Ir ter com a Virgem.
A Virgem é mãe, é muito mãe, e a sua presença acompanha o povo de Deus. Por
isso, gostaria de ir a Portugal, que é privilegiado.
E o que espera de
nós, portugueses? Como podemos preparar-nos para o receber e também para seguir
os pedidos de Nossa Senhora?
O que a Virgem pede sempre é que rezemos, que cuidemos
da família e dos mandamentos. Não pede coisas estranhas. Pede que rezemos pelos
que andam desorientados, pelos que se dizem pecadores – todos o somos, eu sou o
primeiro. Mas a Virgem pede e há que se preparar através desses pedidos da
Virgem, através dessas mensagens tão maternais, tão maternais... e
manifestando-se às crianças. É curioso, Ela procura sempre almas muito simples,
não é? Muito simples.
Esta entrevista
acontece em plena crise dos refugiados. Santo Padre, como está a viver esta
situação?
É a ponta de um icebergue. Vemos estes refugiados,
esta pobre gente que escapa da guerra, que escapa da fome, mas essa é a ponta
do icebergue. Porque debaixo dele, está a causa. E a causa é um sistema
socioeconómico mau e injusto, porque dentro de um sistema económico (dentro do
mundo, falando do problema ecológico, da sociedade socioeconómica, da política)
o centro tem de ser sempre a pessoa. E o sistema económico dominante, hoje em dia,
descentrou a pessoa, colocando no centro o deus dinheiro, que é o ídolo da
moda. Ou seja, há estatísticas, não me recordo bem (isto não é exacto e posso
equivocar-me), mas 17% da população mundial detém 80% das riquezas.
E esta exploração das riquezas dos países mais pobres,
a médio prazo traz esta consequência: a de estes todos que agora querem vir
para a Europa…
E o mesmo acontece nas grandes cidades. Por que surgem
as favelas nas grandes cidades?
O critério é o mesmo…
É o mesmo; é gente que vem do campo, porque o
desflorestaram, porque fizeram monocultivo, não têm trabalho e vão para as
grandes cidades.
Em África, também é igual…
Em África... ou seja, é o mesmo fenómeno. Então, esta
gente emigrada que vem para a Europa – é a mesma coisa – à procura de um sítio.
E, claro, para a Europa neste momento, é uma surpresa, porque até custa a crer
que isto esteja a acontecer, não é? Mas acontece.
Mas o Santo Padre, quando foi a Estrasburgo, disse que
era “necessário actuar sobre as causas e não apenas sobre os efeitos”. Mas
parece que ninguém ouviu e, agora, os efeitos estão à vista…
Temos de ir às causas.
E ninguém o ouviu, muito provavelmente…
Onde as causas são a fome, há que criar fontes de
trabalho, investimentos. Onde a causa é a guerra, procurar a paz, trabalhar
pela paz. Hoje em dia, o mundo está em guerra contra si mesmo, ou seja, o mundo
está em guerra, como digo, uma guerra em folhetins, aos pedaços, mas também
está em guerra contra a Terra, porque está a destruir a Terra, ou seja, a nossa
casa comum, o ambiente. Os glaciares estão a derreter-se, no Árctico, o urso
branco vai cada vez mais para o norte para poder sobreviver.
E a preocupação pelo
homem e pelo seu destino, parece ignorada. Como vê a reacção da Europa à vaga
de refugiados? Uns constroem muros, outros escolhem os refugiados consoante a
sua religião, outros aproveitam esta situação para fazer discursos populistas.
Cada um faz uma interpretação da sua cultura. E, por
vezes, a interpretação ideológica, ou das ideias, é mais fácil do que fazer as
coisas, que é a realidade. Mais longe da Europa, há um outro fenómeno que
também me doeu muito: os “rohingya” [grupo étnico muçulmano, provavelmente, com
origem na antiga Birmânia. Marginalizados por razões étnicas e religiosas,
foram apontados pela ONU como uma das minorias mais perseguidas do mundo], que
foram expulsos do seu país e que entram num barco e partem. Chegam a um porto
ou a uma praia, dão-lhes água, dão-lhes de comer e depois, mandam-nos outra vez
para o mar e não os acolhem. Ou seja, falta a capacidade de acolhimento da
humanidade.
Porque não é tolerar; é mais do que tolerância: é
acolhimento.
Acolher, acolher as pessoas, e acolher tal como vêm.
Eu sou filho de emigrantes e pertenço à onda migrante do ano 1929. Mas na
Argentina, desde o ano 1884, começaram a chegar italianos, espanhóis...
portugueses, não sei quando chegou a primeira onda portuguesa; vinham sobretudo
destes três países. E quando chegavam lá, alguns tinham dinheiro, outros iam
para o hotel de emigrantes e daí eram enviados para as cidades. Iam trabalhar
ou procurar trabalho. É verdade que, naquela época, havia trabalho, mas, os da
minha família – que tinham trabalho quando chegaram, em 29 –, no ano 32, com a
crise económica de 30, ficaram na rua, sem nada. O meu avô comprou um armazém
com dois mil pesos que lhe emprestaram e o meu pai, que era contabilista,
andava a fazer distribuição com a canasta; ou seja, tinham vontade de lutar, de
vencer... Eu sei o que é a migração! E depois, vieram as migrações da Segunda
Guerra, sobretudo do centro da Europa, muitos polacos, eslovacos, croatas,
eslovenos e também da Síria e do Líbano. E sempre nos demos bem por lá. Na
Argentina, não houve xenofobia. E agora, há migração interna na América, vêm de
outros países da América para a Argentina, apesar de ter diminuído nos últimos
anos, por falta de trabalho na Argentina.
E também do México para os Estados Unidos. Há todo um
fenómeno…
O fenómeno migratório é uma realidade. Mas eu queria
abordar o tema, sem censurar ninguém. Quando há um espaço vazio, a gente
procura preenchê-lo. Se um país não tem filhos, vêm os emigrantes ocupar o
lugar. Penso no nível dos nascimentos de Itália, Portugal e Espanha. Creio que
é quase 0%. Então, se não há filhos, há espaços vazios. Ou seja, o não querer
ter filhos, em parte, – e isto é uma interpretação minha, não sei se está
correcta – é um pouco o resultado da cultura do bem-estar, não é? Eu ouvi,
dentro da minha própria família, cá, há uns anos, por parte dos meus primos italianos
dizer: “Não, crianças, não; preferimos viajar nas férias, ou comprar uma
‘villa’, ou isto ou aquilo”... e os idosos vão ficando sozinhos. Creio que o
grande desafio da Europa é voltar a ser a mãe Europa...
E não a…
... a avó Europa. Perdão, há países da Europa que são
jovens, por exemplo, a Albânia. A Albânia impressionou-me, gente com 40 anos,
45 anos... e a Bósnia-Herzegovina, ou seja, países que se refizeram depois de
uma guerra, não é?
Por isso, o Santo Padre os visitou…
Ah sim, claro. É um sinal para a Europa.
Mas este desafio do acolhimento a estes refugiados que
estão a entrar, na sua perspectiva, pode ser muito positivo para a Europa? É um
benefício, uma provocação? Finalmente, de algum modo, a Europa pode despertar,
mudar de rumo?
Pode ser. É verdade e reconheço que, hoje em dia, as
condições de segurança territorial não são as mesmas de outra época porque, na
verdade, temos, a 400 quilómetros da Sicília, uma guerrilha terrorista
sumamente cruel, não é? Então, existe o perigo da infiltração, isso é verdade.
E que pode chegar até Roma.
Ah sim, ninguém assegurou que Roma seja imune a isto,
não é? Mas podem-se tomar precauções e pôr toda a gente que vem a trabalhar.
Mas também há outro problema, é que a Europa atravessa uma crise laboral muito
grande. Há um país, melhor, vou falar de três países, mas que não vou nomear,
dos mais importantes da Europa, em que o desemprego juvenil dos jovens com
menos de 25 anos, num país é de 40%, noutro país é de 47% e noutro é de 50%. Há
uma crise laboral, o jovem não encontra trabalho. Ou seja, misturam-se muitas
coisas. Nisto, não podemos ser simplistas. Evidentemente, se chega um
refugiado, com as medidas de segurança de todo o tipo, há que recebê-lo, porque
é um mandamento da Bíblia. Moisés disse ao seu povo: “Recebei o forasteiro
porque não esqueçais que vós fostes forasteiros no Egipto”.
Mas o ideal era que eles não tivessem fugido, que
ficassem nas suas terras, não?
Isso, sim.
O que eu pedi foi isto: que cada paróquia, cada
instituto religioso, cada mosteiro, acolha uma família. Uma família, não uma
pessoa. Uma família dá mais segurança de contenção, um pouco para evitar que
haja infiltrações de outro tipo. Quando digo que uma paróquia deve acolher uma
família, não digo que tenham de ir viver para a casa do padre, para a casa
paroquial, mas que toda a comunidade paroquial veja se há um lugar, um canto
num colégio para aí se fazer um pequeno apartamento ou, na pior das hipóteses,
que arrendem um modesto apartamento para essa família; mas que tenham um tecto,
que sejam acolhidos e que se integrem na comunidade. Já tive muitas reacções,
muitas, muitas. Há conventos que estão quase vazios.
Há dois anos, o Santo Padre já fez esse apelo e que
resultados é que houve?
Só quatro. Um deles, dos jesuítas (risos); muito bem,
os jesuítas! Mas o assunto é sério, porque aí também há a tentação do deus
dinheiro. Algumas congregações dizem “Não, agora que o convento está vazio,
vamos fazer um hotel e podemos receber pessoas e, com isso, sustentamo-nos ou
ganhamos dinheiro”. Pois bem, se quereis fazer isso, pagai os impostos! Um
colégio religioso, por ser religioso está isento de impostos, mas se funciona
como hotel, então, que pague os impostos como qualquer vizinho do lado. Senão,
o negócio não é limpo.
E o Santo Padre já disse que, aqui no Vaticano, acolhe
duas famílias.
Sim, duas famílias. Já me disseram ontem que as
famílias já estavam localizadas e as duas paróquias do Vaticano encarregaram-se
de as procurar.
Sim, sim, sim, já estão. Quem o fez foi o cardeal
Comastri, que é o meu vigário-geral para o Vaticano, juntamente com o
encarregado da Esmolaria Apostólica, monsenhor Konrad Krajewski, que trabalha
com os sem-abrigo e foi quem fez os duches debaixo da colunata, o serviço de
barbearia – realmente, uma maravilha – é o que leva os que vivem na rua a ver
os museus e a Capela Sistina.
E estas famílias
ficam até quando?
Até quando o Senhor quiser. Não se sabe como isto vai
acabar, não é? De todas as maneiras, quero dizer que a Europa tomou
consciência, e eu agradeço-lhe. Agradeço aos países da Europa que tomaram
consciência disto.
A Renascença aderiu
em Portugal a uma iniciativa, que reúne instituições cristãs e também de outras
religiões, para acolher e movimentar-se a favor dos refugiados. Pode dizer
algumas palavras a quem participa nesta plataforma?
Felicito-vos e agradeço-vos pelo que estão a fazer e
dou-vos um conselho: no dia do Juízo Final, já sabemos sobre o que vamos ser
julgados, está escrito no capítulo 25 de São Mateus. Quando Jesus vos disser
“Estive com fome, deste-me de comer?”, vocês vão dizer “Sim. “E quando estive
sem refúgio, como refugiado, ajudaste-me?”, “Sim”. Pois, felicito-vos: vão
passar no exame! E também queria dizer uma coisa sobre o trabalho com jovens
desocupados. Creio que aqui é urgente, sobretudo para as congregações
religiosas que têm como carisma a educação, mas também os leigos, os educadores
leigos, que inventem cursos, pequenas escolas de emergência. Então, para um
jovem que está desocupado, se estudar, durante seis meses, para ser cozinheiro
ou canalizador, para fazer pequenas reparações – há sempre um tecto para
arranjar - ou para pintor, com esse ofício, terá mais possibilidade de
encontrar um trabalho, ainda que parcial ou temporário. Fazer o que nós
chamamos de “biscate”, um trabalho ocasional e com isso não está totalmente
desocupado. Mas hoje é o tempo da educação de emergência. Foi o que fez Dom
Bosco. Dom Bosco, quando viu a quantidade de crianças que havia na rua, disse
“tem de haver educação”, mas não mandou as crianças para a escola média ou
secundária, sim aprender ofícios. Então, preparou carpinteiros, canalizadores,
que os ensinavam a trabalhar e, assim, já tinham com que ganhar o pão. Dom
Bosco fez isso. E agora gostava de contar um episódio sobre Dom Bosco. Aqui em
Roma, perto do Trastevere, onde...
Era uma zona pobre.
Sim, era uma zona muito pobre, mas que agora é zona da
moda para os jovens, para a “movida”, não é? Pois Dom Bosco passou por ali, ia
de carruagem – ou de carro, não sei – e atiraram-lhe uma pedrada que partiu o
vidro. Ele mandou parar e disse: “Este é o lugar que onde vamos ficar!”. Ou
seja, perante uma agressão, não a viveu como agressão, viveu-a como um desafio
para ajudar aquela gente, as crianças, os jovens que só sabiam agredir. E hoje,
existe ali uma paróquia salesiana que forma jovens e crianças, com as suas
escolas e as suas coisas. Assim, volto ao tema dos jovens: o importante é que
hoje se dê, aos jovens que não têm trabalho, uma educação de emergência sobre
algum ofício que lhes permita ganhar a vida.
É muito crítico também sobre o estilo de vida
ocidental e da Europa, o chamado primeiro mundo, muito centrado no bem-estar. O
que é que o incomoda mais?
Bem, quer dizer, também nas grandes cidades
americanas, quer da América do Norte, quer da América do Sul, existe este mesmo
problema, não é só na Europa...
...é o chamado primeiro mundo.
Sim, nas grandes cidades... Em Buenos Aires há um
grande sector da cultura do bem-estar e, por isso, também há esses cordões à
volta das cidades, as favelas e todas essas coisas, não é? Eu, em relação à
Europa, hoje, não lhe atiraria à cara este tipo de coisas. Há que reconhecer
que a Europa tem uma cultura excepcional. Realmente, são séculos de cultura e
isso também dá um bem-estar intelectual. Em todo o caso, o que eu diria da
Europa, é a sua capacidade de retomar uma liderança no concerto das nações. Ou
seja, que volte a ser a Europa que define rumos, pois tem cultura para o fazer.
Mas mantém a
identidade, hoje em dia, a Europa? Está em condições de afirmar a sua
identidade?
O que eu disse em Estrasburgo, pensei muito antes de o
dizer. Ou seja, volto a repetir um pouco isso: a Europa ainda não morreu. Está
meia-avozinha [risos], mas pode voltar a ser mãe. E eu tenho confiança nos
políticos jovens. Os políticos jovens tocam outra música. Há um problema
mundial, que afecta não só a Europa, mas o mundo inteiro, que é o problema da
corrupção. A corrupção a todos os níveis... e isso também revela um baixo nível
moral, não é?
O Santo Padre fala disso na sua última encíclica e
pede para as populações estarem mais conscientes. No entanto, verifica-se muita
abstenção. Se vemos os resultados das eleições, a abstenção é quase maior do
que um partido…
Porque a gente está desiludida. Em parte, por causa da
corrupção, em parte pela ineficácia, em parte pelos compromissos assumidos
anteriormente. E, no entanto, a Europa – volto a dizer o que disse em
Estrasburgo – tem que desempenhar o seu papel, ou seja, recuperar a sua
identidade. É verdade que a Europa se enganou – não estou a criticar, mas só a
recordar –, quando quis falar da sua identidade sem querer reconhecer o mais
profundo da sua identidade, que é a sua raiz cristã, não foi? Aí enganou-se.
Bom, mas todos nos enganamos na vida... está a tempo de recuperar a sua fé.
O que é que pode tocar a liberdade de alguém que “faz
o que quer” e que foi educado desde pequeno com um conceito de felicidade para
quem “a felicidade é não ter problemas”? Em geral, educam-se as crianças com
este desejo de que a felicidade é “não ter problemas e fazer o que se quer”.
Uma vida sem problemas é aborrecida. É um tédio. O
homem tem, dentro de si, a necessidade de enfrentar e de resolver conflitos e
problemas. Evidentemente, uma educação para não ter problemas, é uma educação
asséptica. Faça você mesma a experiência: pegue num copo de água mineral, de
água comum, da torneira, e depois pegue num copo com água destilada. Mete nojo,
mas a água destilada não tem problemas... (risos) é como educar as crianças no
laboratório, não é? Por favor!
Arriscar é
importante?
Correr o risco, propor sempre metas! Para educar, faz
falta usar os pés. Para educar bem, há que ter um pé bem apoiado no chão e o
outro pé levantado mais à frente e ver onde o posso apoiar. E quando tenho
apoiado o outro, levanto este [faz o gesto com os pés] e... isso é educar:
apoiar-se sobre algo seguro, mas tentar dar um passo em frente até que o tenha
firme e, depois, dar outro passo.
Dá mais trabalho educar assim…
É arriscar! Porquê?
Porque talvez piso mal e caio... pois bem, levantas-te e segues em frente!
Na onda
individualista em que vivemos – falou nisso em Estrasburgo – parece um capricho
exigir direitos, sempre mais direitos separados da busca da verdade. Crê que
isto é também um problema na maneira de viver a fé?
Pode ser... sempre com mais exigências, sem a
generosidade de dar. Ou seja, é exigir só os meus direitos e não os meus
deveres perante a sociedade, não é? Eu creio que direitos e deveres caminham
juntos. Senão, isso, cria a educação do espelho; porque a educação do espelho é
o narcisismo e hoje estamos numa civilização narcisista.
E como é que se a
vence, como se combate?
Com a educação, por exemplo, com direitos e deveres,
com a educação dos riscos razoáveis, procurando metas, avançando e não ficando
quieto ou a olhar ao espelho... não vá acontecer-nos como aconteceu ao Narciso
que, de tanto se olhar espelhado na água e se achar tão lindo, tão lindo,
“blup”, afogou-se. [risos]
Diz que prefere uma
igreja acidentada a uma igreja estagnada. O que entende por “igreja
acidentada”?
Sim, eu explico: é uma imagem de vida. Se uma pessoa
tem em sua casa uma divisão, um quarto, fechado durante muito tempo, surge a
humidade, o mofo e o mau cheiro. Se uma igreja, uma paróquia, uma diocese, um
instituto, vive fechada em si mesmo, adoece (acontece o mesmo com o quarto
fechado) e ficamos com uma Igreja raquítica, com normas rígidas, sem
criatividade, segura, mais que segura, assegurada por uma companhia de seguros,
mas não segura! Pelo contrário, se sai – se uma igreja, uma paróquia saem – lá
para fora, a evangelizar, pode acontecer-lhe o mesmo que acontece a qualquer
pessoa que sai para a rua: ter um acidente. Então, entre uma igreja doente e
uma Igreja acidentada, prefiro uma acidentada porque, pelo menos, saiu para a
rua.
E aqui, quero repetir uma coisa que já disse noutra
ocasião: na Bíblia, no Apocalipse, há uma coisa linda de Jesus, creio que no
segundo capítulo (no final do primeiro ou no segundo), em que está a falar a
uma Igreja e diz: “Estou à porta e chamo” - Jesus está a bater – “Se me abres a
porta, entro e vou comer contigo”. Mas eu pergunto: quantas vezes, na Igreja,
Jesus bate à porta do lado de dentro para que O deixemos sair, a anunciar o
reino? Por vezes, apropriamo-nos de Jesus só para nós, e esquecemo-nos que uma
Igreja que não está em saída, uma Igreja que não sai, mantém Jesus preso,
aprisionado
.
Foi por causa disso
que foi eleito Papa?
Isso pergunte ao Espírito Santo! [risos]
Desde que é Papa,
considera que a Igreja está mais acidentada?
Não sei. Sei que, pelo que me dizem, Deus está a
abençoar muito a sua Igreja. É um momento que não depende da minha pessoa, mas
da bênção que Deus quis dar à sua Igreja, neste momento. E agora, com este
Jubileu da Misericórdia, espero que muita gente sinta a Igreja como mãe. Porque
pode acontecer à Igreja o mesmo que aconteceu à Europa, não é? Ficar
demasiadamente avó, em vez de mãe, incapaz de gerar vida.
É este é o motivo do
Jubileu da Misericórdia?
Que venham todos! Que venham e sintam o amor e o
perdão de Deus. Conheci, em Buenos Aires, um frade capuchinho, um pouco mais
novo do que eu, que é um grande confessor. Tem sempre uma grande fila, com muita
gente, está todo o dia a confessar. Ele é um grande “perdoador”, perdoa muito.
E, às vezes, tem escrúpulos por ter perdoado muito. Então, uma vez, em
conversa, disse-me: “Às vezes, tenho escrúpulos”. E eu perguntei-lhe: “E o que
fazes, quando tens esses escrúpulos?”. “Vou diante do sacrário, olho para o
Senhor e digo-lhe: Senhor, perdoai-me, hoje perdoei muito, mas que fique bem
claro que a culpa é toda vossa, porque fostes Vós a dar-me o mau exemplo!"
Por isso o Santo Padre, neste sentido, também decidiu,
nesta carta [a monsenhor Rino Fisichella sobre o Jubileu da Misericórdia]
propor o perdão às situações mais difíceis e agora mesmo publicou estas cartas
[de “motu proprio”, iniciativas do Papa que têm normalmente a forma de decreto]
que aceleram os processos de nulidade. Isto também tem a ver com o Jubileu?
Sim, simplificar... Facilitar a fé às pessoas. E que a
Igreja seja mãe...
A razão destas cartas
“motu proprio” para a nulidade qual é, exactamente, é agilizar?
Agilizar, agilizar os processos nas mãos do bispo. Um
juiz, um defensor do vínculo, só uma sentença, porque até agora havia duas
sentenças. Não, agora, é só uma. Se não houver apelo, já está. Se houver apelo,
vai para o metropolita, mas agilizar. E também a gratuidade dos processos.
O Santo Padre fez
isto a pensar também no Sínodo e no Jubileu?
Está tudo relacionado.
Já sei que não quer falar do Sínodo, mas, no seu
coração de pastor universal, o que pede?
Peço que rezem muito. Sobre o Sínodo, vocês os
jornalistas, já conhecem o “Instrumentum Laboris”. Vai-se falar disso, do que
lá está. São três semanas, um tema, um capítulo, para cada semana. E esperam-se
muitas coisas, porque, evidentemente, a família está em crise. Os jovens não se
casam. Não se casam. Ou então, com esta cultura do provisório, dizem “ou vivo
junto ou me caso, mas só enquanto dura o amor, depois, tchau...”
E que diz a quem vive
uma moral contrária à indicação da Igreja e que tem esta ansiedade de perdão?
Lá no Sínodo vai-se falar de todas as possibilidades
de ajudar estas famílias. Que uma coisa fique clara – e que o Papa Bento o
deixou bem esclarecido: as pessoas que vivem uma segunda união não estão
excomungadas e têm de ser integradas na vida da Igreja. Isso ficou claríssimo.
E eu, no outro dia na catequese, também o disse claramente: aproximar-se da
missa, da catequese, na educação dos filhos, nas obras de caridade... há mil
coisas, não é?
Santidade, gostaria de terminar com perguntas sobre a
sua vocação. No início de Março de 2013, preparava-se para ir para a “reforma”.
Já tinha decidido onde ia ficar a viver, etc.. No entanto, tornou-se um dos
homens mais famosos a nível mundial. Como vive esta circunstância?
Não perdi a paz. É um dom... a paz é um dom de Deus. É
um dom que Deus me deu, algo que eu não imaginava, pela idade que tenho e por
tudo isso. E, mais ainda, eu até já tinha previsto o meu regresso, pensando que
nenhum Papa seria escolhido na Semana Santa. Então, se demorássemos a elegê-lo,
teríamos de nos despachar até sábado, antes do Domingo de Ramos. E comprei um bilhete
de regresso, para poder celebrar Missa no Domingo de Ramos e até deixei
preparada, na minha escrivaninha, a homilia. Foi uma coisa que eu não esperava
e, em Dezembro, deixaria o cargo para o qual ia ser nomeado um sucessor.
Assim...
…há toda uma aventura, agora, à sua frente.
Tudo... mas não perdi a paz. Não perdi a paz.
O Papa Francisco é
amado em todo o mundo, a sua popularidade cresce, como revelam as sondagens, e
tantos querem vê-lo candidato ao prémio Nobel. Mas Jesus avisou os seus:
”Sereis odiados por causa do meu nome”. Como é que se sente, Santidade?
Muitas vezes me pergunto como será a minha cruz, como
é a minha cruz... As cruzes existem. Não se vêem, mas estão lá. E também Jesus,
num certo momento, foi muito popular e, depois, acabou como acabou. Ou seja,
ninguém tem garantida a felicidade mundana. A única coisa que eu peço, é que me
conserve a paz do coração e que me conserve na sua Graça, porque, até ao último
momento, somos pecadores e podemos renegar a sua Graça. Consola-me uma coisa:
que São Pedro cometeu um pecado muito grave – renegar Jesus – e, depois,
fizeram-no Papa... Se com este pecado o fizeram Papa, com todos os que eu
tenho, consolo-me, pois o Senhor cuidará de mim como cuidou de Pedro. Mas Pedro
morreu crucificado, enquanto eu não sei como vou terminar. Que Ele decida,
desde que me dê a paz, que Ele faça o que quiser.
Como é que vive a sua
liberdade sendo Papa? Apareceu de surpresa numa missa em S. Pedro, de manhã
cedo, foi ao oculista arranjar os óculos… Precisa do contacto com as pessoas?
Sim, tenho necessidade de sair, mas ainda não chegou a
altura certa... mas, pouco a pouco, vou tendo contacto com as pessoas às
quartas-feiras e isso ajuda-me muito. Sim, a única coisa que estranho em
relação a Buenos Aires é sair a “callejear”, andar na rua.
E terminamos com umas perguntas rápidas: o que lhe
tira o sono?
Posso dizer-lhe a verdade? Durmo como uma pedra!
[risos]
E o que o faz correr?
Sempre que há muito trabalho.
O que nunca é urgente, que pode esperar?
O que não é urgente? As pequenas coisas que podem
esperar até amanhã ou depois. Há coisas que são muito urgentes e outras que não
são urgentes... mas não saberei dizer-lhe, em concreto, que isto é mais urgente
do que aquilo.
Com que frequência se
confessa?
Todos os 15 dias, 20 dias. Confesso-me a um padre
franciscano, o padre Blanco, que tem a bondade de vir cá confessar-me. E nunca
tive de chamar uma ambulância para o levar de regresso, assustado com os meus
pecados! [risos]
Como e onde gostaria
de morrer?
Onde Deus quiser. A sério... onde Deus quiser...
A última: como
imagina a eternidade?
Quando era mais novo, imaginava-a muito aborrecida
[risos]. Agora, penso que é um Mistério de encontro. É quase inimaginável, mas
deve ser algo muito bonito e maravilhoso encontrar-se com o Senhor.
Obrigada, Santo
Padre.
Obrigado eu, e uma grande saudação a todos os ouvintes
desta rádio. E, por favor, peço-vos que rezem por mim. Que Deus vos abençoe e
que a Virgem de Fátima vos proteja.
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