TRAÇOS MEUS
37. Alguém confiava em mim, e isso era importante! * por Armando Soares
“O filho do Zé Maria é capaz de lá chegar!”
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P. Armando Soares |
Meus pais, de saudosa memória e que Deus tenha
na Sua Paz – José Maria e Margarida Preciosa – eram pessoas trabalhadoras e de
fé, muito conhecidas e estimadas na freguesia (de Vila Boa do Bispo), vivendo
do seu trabalho quotidiano naquela monotonia encantadora e por vezes difícil,
da vida rural campestre e artesanal, onde o amanhã é quase sempre igual ao
hoje, e o hoje igual ao ontem, e onde as pessoas fariam quase uma família se
não fossem os problemas de partilhas de águas e dos limites dos campos e das
tapadas. Aos domingos vestia-se a roupa nova e ia-se à igreja à missa, que era
bonito e era necessário para não ser apontado a dedo ou não ser riscado da
lista da visita pascal pelo Sr. Abade. De resto, o adro da igreja, do antigo
mosteiro, era ponto de encontro dos compadres e dos jovens casadoiros, em busca
de namorada, pensando no futuro. Entrei para a escola e para a catequese. Para
aquela, aos seis anos. Nesta, logo que aprendi as fórmulas das principais orações,
e em pouco tempo, era faltador de primeira, saindo de casa mas ficando a
brincar pelo caminho, sem chegar à igreja! Meu Abade – o Padre Machado – de
santa memória, e um bom pastor, tinha sempre muito empenho em seleccionar os
meninos melhor prendados e de boas famílias, para os encaminhar para o
seminário. Minha tia Aninhas, que era governanta da casa paroquial, tinha muito
gosto em que o meu irmão mais velho, que era seu afilhado, fosse para o Seminário,
para ser Padre. Mas ele nunca aceitou a ideia. “Não queria andar de saias!” Eu
também nunca pensara no caso. Terminada a 4ª classe, resolvi ir para o
Seminário das Missões de Tomar, juntamente com dois colegas, porque era amigo
deles. Eu, que fugia da catequese, depois de saber as fórmulas todas, e que,
por altura do compasso (=visita pascal) me metia debaixo da cama e fechava a
porta do quarto à chave, enquanto o senhor Abade, de roquete e barrete
tricórnio, estivesse em casa! Ou eu ouvisse o tilintar da campainha! Do meu
esconderijo só saía quando a campainha tocava já longe! Satisfeito pela minha
proeza, ainda que envergonhado pelos pedidos insistentes dos meus padrinhos de
Baptismo – senhores Armando Alves e Amélia - , para que ficasse e que não
tivesse medo. Mas, com aquele homem de saias em casa, não! São histórias
patuscas da vida. Também através delas Deus escreve. Decidi, então, com o apoio
da minha tia Aninhas, que ficou radiante de contente, ir para o Seminário das
Missões. Para estudar e ser missionário, embora também não gostasse de barbas,
que então caracterizavam os missionários. Em Tomar, entrámos 56, vindos
sobretudo do Norte e do Centro do país, todos contando coisas maravilhosas das
suas terras e discutindo futebol e alinhadinhos na forma e direitinhos na
capela a rezar. Na capela bela e artística do Convento de Cristo. E naquele
casarão, ensaiamos viver. Ensaiamos viver histórias que só o Espírito de Deus é
capaz de tecer. Por lá fiquei, cheio de saudades, sem visitas e vindo a casa
uma vez por ano, nas férias grandes. Não sentia que tivesse bebido muito leite
espiritual ou que algum anjo especial me conduzisse, mas o dedo de Deus estava
lá, isso sim! Nas férias do primeiro ano, num dia em que passava junto de dois
homens que estavam serrando lenha, no Bairral, ouvi um deles dizer, julgando
que eu não ouvia, ao passar: “O filho do Zé Maria é capaz de lá chegar!”. O
comentário daquele homem simples cá me ficou a soar continuamente no ouvido.
Este comentário do pai do senhor Manuel do Bairral, deu-me mais confiança em
mim mesmo no meio da minha grande timidez, aliás própria da gente humilde da
aldeia. Mas havia alguém que confiava em mim e isso era importante!
* in NA FORÇA DA PALAVRA 37
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