ARMANDO SOARES Alguém confiava em mim, e isso era importante!

ARMANDO SOARES  Alguém confiava em mim, e isso era importante!
Armando Soares

Meus pais, de saudosa memória e que Deus tenha na Sua Paz – José Maria e Margarida Preciosa – eram pessoas trabalhadoras e de fé, muito conhecidas e estimadas na freguesia (de Vila Boa do Bispo), vivendo do seu trabalho quotidiano naquela monotonia encantadora e por vezes difícil, da vida rural campestre e artesanal, onde o amanhã é quase sempre igual ao hoje, e o hoje igual ao ontem, e onde as pessoas fariam quase uma família se não fossem os problemas de partilhas de águas e dos limites dos campos e das tapadas.
Aos domingos vestia-se a roupa nova e ia-se à igreja à missa, que era bonito e era necessário para não ser apontado a dedo ou não ser riscado da lista da visita pascal pelo Sr. Abade. De resto, o adro da igreja, do antigo mosteiro, era ponto de encontro dos compadres e dos jovens casadoiros, em busca de namorada, pensando no futuro.

Entrei para a escola e para a catequese. Para aquela, aos seis anos. Nesta, logo que aprendi as fórmulas das principais orações, e em pouco tempo, era faltador de primeira, saindo de casa mas ficando a brincar pelo caminho, sem chegar à igreja! Meu Abade – o Padre Machado – de santa memória, e um bom pastor, tinha sempre muito empenho em seleccionar os meninos melhor prendados e de boas famílias, para os encaminhar para o seminário. Minha tia Aninhas, que era governanta da casa paroquial, tinha muito gosto em que o meu irmão mais velho, que era seu afilhado, fosse para o Seminário, para ser Padre. Mas ele nunca aceitou a ideia. “Não queria andar de saias!” Eu também nunca pensara no caso.

Terminada a 4ª classe, resolvi ir para o Seminário das Missões de Tomar, juntamente com dois colegas, porque era amigo deles. Eu, que fugia da catequese, depois de saber as fórmulas todas, e que, por altura do compasso (=visita pascal) me metia debaixo da cama e fechava a porta do quarto à chave, enquanto o senhor Abade, de roquete e barrete tricórnio, estivesse em casa! Ou eu ouvisse o tilintar da campainha! Do meu esconderijo só saía quando a campainha tocava já longe! Satisfeito pela minha proeza, ainda que envergonhado pelos pedidos insistentes dos meus padrinhos de Baptismo – senhores Armando Alves e Amélia - , para que ficasse e que não tivesse medo. Mas, com aquele homem de saias em casa, não! São histórias patuscas da vida. Também através delas Deus escreve.

Decidi, então, com o apoio da minha tia Aninhas, que ficou radiante de contente, ir para o Seminário das Missões. Para estudar e ser missionário, embora também não gostasse de barbas, que então caracterizavam os missionários. Em Tomar, entrámos 56, vindos sobretudo do Norte e do Centro do país, todos contando coisas maravilhosas das suas terras e discutindo futebol e alinhadinhos na forma e direitinhos na capela a rezar. Na capela bela e artística do Convento de Cristo. E naquele casarão, ensaiamos viver. Ensaiamos viver histórias que só o Espírito de Deus é capaz de tecer. Por lá fiquei, cheio de saudades, sem visitas e vindo a casa uma vez por ano, nas férias grandes. Não sentia que tivesse bebido muito leite espiritual ou que algum anjo especial me conduzisse, mas o dedo de Deus estava lá, isso sim!

Nas férias do primeiro ano, num dia em que passava junto de dois homens que estavam serrando lenha, no Bairral, ouvi um deles dizer, julgando que eu não ouvia, ao passar: “O filho do Zé Maria é capaz de lá chegar!”. O comentário daquele homem simples cá me ficou a soar continuamente no ouvido. Este comentário do pai do senhor Manuel do Bairral, deu-me mais confiança em mim mesmo no meio da minha grande timidez, aliás própria da gente humilde da aldeia. Mas havia alguém que confiava em mim e isso era importante!


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