OLHAR SOBRE O MUNDO No ritual: “Enterrar os mortos” e “rezar por eles” por HIPÓLITO VIDA

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No ritual: “Enterrar os mortos” e “rezar por eles”…duas obras de misericórdia que se interligam por HIPÓLITO VITA
A misericórdia é hoje um tema actual, mas profundamente esquecido. Ela concretiza o paradigma cristão. Não é um tema alheia à Sagrada Escritura, pois nela encontramos o espelho de como a misericórdia se exprime na sua concretude. Somos todos chamados a testemunhar, não só por palavras mas por actos concretos este “rosto de misericórdia do Pai” que se manifesta na Pessoa de Jesus Cristo (Cfr. Misericordiae Vultus - Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, n. 1).
Curiosamente, quer a sétima obra de misericórdia corporal, quer a sétima obra de misericórdia espiritual tem a ver com os mortos. Enquanto a primeira se resume no “enterrar os mortos”, a segunda versa a “oração (pelos vivos e) pelos mortos”. Só por isso percebe-se quão importante são estas obras de misericórdia que, sem menosprezar as que lhes antecedem, espelham o valor do nosso corpo. Aliás, como diz o monge Luciano Manicardi num dos seus artigos: «A caridade é atenção ao corpo do outro. E como o corpo é a realidade humana mais espiritual, é através do contacto com o corpo ferido, carente, sofredor, necessitado, que recriamos as condições de dignidade do ser humano ferido e ofendido, injuriado pela vida. [...] A tradição das obras de misericórdia é atividade eminentemente espiritual, precisamente no seu acontecer no corpo e graças ao corpo».
A bem pouco tempo estudei o ritual das exéquias reformado pelo Concílio vaticano II e percebi o quão a Igreja coloca em lugar de relevo estas obras de misericórdia. A morte envolve todo o ser vivo, pois ela faz parte do crescimento humano, desde o berço até ao túmulo. Por isso mesmo, a grande preocupação do homem é dar um destino digno ao cadáver do ente querido que, no decorrer da vida, foi enfrentando a morte. Nos dias que decorrem, a sociedade é um pouco séptica perante a realidade da morte, por não conseguir enfrentá-la. Desta forma, a morte é tratada como se tivesse perdido a “cidadania”, permitindo-nos, assim, afirmar que desta maneira a vida será o começo natural do envelhecimento que vai desaguar na morte.
Tratando-se de um problema do homem, a ciência procura nas suas mais sofisticadas teorias desvendar o mistério da morte, mas ela continua a grande incógnita, na medida em que ninguém consegue exterminá-la e nem suprimir o deságio que ela provoca. Portanto, a morte é, hoje, um dos temas mais debatidos e pouco compreendidos.
Enquanto não percebermos o significado da morte, esta questão do “porque morremos” permanecerá sempre um problema. Aqui, o rito das exéquias assume um papel fundamental. Sem descurar o contexto cultural, a religião acaba por dar respostas que o ser humano busca quando a morte o visita. O sentimento de perda expõe a fragilidade e a fugacidade da vida humana que busca amparo no Absoluto a fim de encontrar forças para viver.
Perante o problema da morte, realidade não muito bem aceite pelo homem dos nossos dias por temê-la excessivamente, é preciso valorizar os aspectos fundamentais dos ritos exequiais, pois, eles colocam as pessoas num confronto salutar com o real, ou seja, ver partir aqueles que muito amaram para uma viagem sem retorno. Ora, o rito das exéquias é uma mística capaz de atenuar feridas profundas que coroe a nossa existência ao enfrentarmos esta dolorosa separação e ao aceitá-la como uma realidade humana que, por vezes, nos desperta a esperança de qualquer coisa para além da morte, pois Deus é o Deus da vida e não da morte.

O ritual de exéquias exerce um papel importante, enquanto é um anúncio da Páscoa, num clima de confiança na misericórdia de Deus. É um rito de entrega da pessoa falecida nas mãos de Deus e, ao mesmo tempo, um rito de consolação para os familiares e amigos que lhes possibilita aceitarem com fé e tranquilidade os dias de luto em que estão envolvidos. Resumindo: enterrar os mortos e rezar por eles é uma obra tanto quanto importante como importante são todas as outras obras, das quais somos chamados a reflectir e a vive-las hoje e sempre tendo como referencia o “como” proferido por Jesus, ao falar do amor: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15, 12).

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