FÁTIMA peregrinação interior! Voltaremos!
FÁTIMA peregrinação interior!
Voltaremos!
Homilia do cardeal D. António Marto no dia 13 de maio
Foto: Arlindo Homem/Ecclesia |
Peregrinação Interior, Um
Olhar Renovador e Esperançado
Salve, Mãe de
misericórdia!
Neste dia e neste tempo
de incerteza e dor invocamos Nossa Senhora como Mãe da misericórdia.
Pela primeira vez na
história, desde 1917, neste grande dia 13 de maio, o teu povo amado, Senhora,
vindo dos mais diversos ângulos do mundo não pode estar aqui, hoje, em
multidão, impedido pelos riscos da saúde pública. De repente, algo que nem
sequer podíamos imaginar confina-nos nas nossas casas e priva-nos dos momentos
mais afetuosos e desejados da vida, como este que vivemos cada ano junto ti, ó
terna mãe.
É possível que muitos
pensem que esta peregrinação é triste, por se realizar com o recinto fechado e
porque lhe faltam as grandes multidões e o colorido dos anos anteriores. Sem
negar um coeficiente de tristeza e dor que vai no coração de todos, sabemos
pela fé que “para os que amam a Deus tudo serve para o bem” (Rom 8, 28). Neste
sentido, talvez estejamos todos a aprender como é uma peregrinação em estado
puro, o peregrinar com o coração, a peregrinação interior no percurso mais
íntimo da nossa vida, com a companhia espiritual da mãe celeste, que leva cada
um a encontrar-se com Deus santo e misericordioso.
É verdade que não está
aqui no recinto a multidão de devotos para saudar Nossa Senhora com o conhecido
e amado cântico do Ave de Fátima. Mas reparai: antes de nós decidirmos vir ao
santuário, já ela foi ao nosso coração, às nossas casas e nos atraiu. Hoje é
ela que abre as portas deste santuário e sai dele, espiritualmente, como
peregrina para se fazer próxima das nossas vidas, das nossas casas e levar-nos
a consolação do seu coração materno como fez na visita à casa da sua prima
Isabel.
Nós acreditamos,
Senhora, que Tu foste enviada pelo Deus de misericórdia a este lugar bendito
para estares junto de nós e nos acompanhares em todas as situações da vida.
Desde as nossas casas e do nosso coração, com a simplicidade de filhos, ousamos
manifestar-te as nossas preocupações e medos, as nossas feridas e lágrimas, a
nossa confiança em ti. Com paciência, querida mãe, escutarás as nossas
lamentações, chorarás connosco, sofrerás com os nossos sofrimentos e
encontrarás no céu, que é o teu coração, a consolação oportuna para os que
agora nos sentimos frágeis e em perigo e para os que partem sem o conforto dos
seus e sem lhes poderem dizer adeus.
Aqueles que alguma vez
se sentiram verdadeiramente peregrinos neste lugar abençoado, sabem muito bem
que nunca, depois de um encontro contigo, saem daqui vazios. Tu sempre nos
ajudas a olhar em frente, sempre nos dás a medicina espiritual que nos cura e
pacifica, sempre nos ofereces o perfume do amor de Deus, sempre nos convidas à
fé renovada em Cristo, nosso caminho, verdade e vida. Nós sabemos que Tu és
nossa companhia, nestes dias difíceis, e queremos receber-te em nossa casa,
como o Apóstolo João e como os santos Pastorinhos de Fátima.
Como no 13 de maio de
1917, também hoje a “Senhora tão bonita” nos é apresentada, no livro do
Apocalipse, sob a imagem da “mulher revestida de sol” que irradia a luz de
Deus, que nos convida a ver a nossa vida e a história do mundo à luz da fé e
nos convida à confiança no triunfo do bem e da vida sobre o mal e a morte. Por
sua vez, o Evangelho de hoje apresenta-a como mulher humilde no meio do povo,
exemplo de fé para ouvir e cumprir a Palavra de Deus, semente da vida nova e da
santidade em Cristo. A Palavra de Deus motiva-nos, pois, a atualizar a mensagem
de Fátima de esperança e de paz e do apelo à conversão: é possível recomeçar,
com esperança!
De facto, a luz da fé
ajuda-nos a ver o lado positivo das crises, das noites escuras, porque nos diz
que também nessas noites há estrelas de referência. Ou, como escreveu alguém,
“há coisas que se aprendem melhor na calma e há outras que se aprendem melhor
na tempestade” (Willa Cather). A fé ajuda-nos a ler e compreender os sinais dos
tempos na hora presente, com um olhar renovador e esperançado.
Ainda há pouco estávamos
a viver com uma confiança imensa no poder cientifico-técnico, no poder
económico-financeiro, pensando que estaríamos, porventura, imunes a qualquer
epidemia ou, se ela viesse, logo se encontraria uma solução rápida. Mas,
inesperadamente, um vírus imprevisível, invisível, silencioso, capaz de
contagiar tudo e todos, põe o mundo inteiro a vacilar. Sentimos o chão a
fugir-nos debaixo dos pés. Todas as nossas agendas e programações caíram como
um castelo de cartas. Logo foram precisos planos de contingência e de
emergência para fazer face a este flagelo global.
É uma situação dramática
e trágica, sem precedentes, que nos convida a refletir sobre a vida e, em
primeiro lugar, a ir ao essencial, que muitas vezes esquecemos quando a vida
corre bem. Põe a nu e revela a vulnerabilidade e a fragilidade da nossa
condição humana. Às vezes, parecemos tão tremendamente fortes e somos tão tremendamente
frágeis e vulneráveis. Leva-nos a pensar sobre o sentido da vida (para quê
vivo? para quem vivo?) e sobre a possibilidade e a realidade da morte, da nossa
própria morte e da dos entes queridos. Obriga-nos a repensar os nossos hábitos,
o nosso estilo de vida, a escala de valores que orienta a nossa vida. Não se
pode viver só para produzir e para consumir, para ter e para aparecer.
Coloca-nos perante o grande mistério último da vida e da humanidade que nós, os
crentes, chamamos Deus, e nós, os cristãos, chamamos o Deus de Jesus Cristo.
Tudo isto, irmãos e
irmãs, exige uma reflexão interior, espiritual e também a abertura do nosso
coração a Deus, tão esquecido, ignorado, marginalizado.
A pandemia é um
chamamento à conversão espiritual mais em profundidade. Um chamamento aos fiéis
cristãos, mas também a todos os homens, que permanecem criaturas de Deus. Uma
vida melhor na nossa casa comum, em paz com as criaturas, com os outros e com
Deus, uma vida rica de sentido requer conversão! Perguntemo-nos, pois, se temos
tempo para Deus, se lhe damos o lugar que Ele merece no nosso coração e na
nossa vida.
A nossa vulnerabilidade
e fragilidade fazem-nos sentir a todos unidos em humanidade, porque o vírus
ultrapassa todas as barreiras geográficas e todas as condições sociais,
económicas, hierárquicas: ricos e pobres, grandes e pequenos, letrados ou
iletrados, ninguém está imune. Sentimo-nos unidos e pertencentes a uma
humanidade comum, na fragilidade, mas também mais unidos na fraternidade e na
solidariedade. E damos conta de que a nossa liberdade só pode ser exercida na
responsabilidade e na solidariedade, porque somos interdependentes e solidários
uns dos outros e por isso nos salvamos todos juntos ou nos afundamos todos
juntos. E uma outra coisa: descobrimos também quão é importante a família como
suporte humano e espiritual, como pequena Igreja doméstica nestes tempos de
confinamento. A pandemia, com a longa interrupção da vida normal, traz
terríveis consequências económicas, sociais e laborais. Já está a gerar uma
outra pandemia mais dolorosa, a da extensão da pobreza, da fome e da exclusão
social, agravada pela cultura da indiferença e do individualismo. O vírus da
indiferença só é derrotado com os anticorpos da compaixão e da solidariedade.
Como cristãos não podemos
ficar indiferentes, olhar para o lado. A este propósito interpela-nos a
impressionante visão da pequena santa Jacinta, que ela comunicou à Lúcia,
nestes termos: “Não vês tanta estrada, tantos caminhos e campos cheios de
gente, a chorar com fome, e não têm nada para comer? E o Santo Padre em uma
igreja diante do Imaculado Coração de Maria a rezar? E tanta gente a rezar com
ele?”. É uma situação que já bate à porta das Caritas diocesanas e de várias
paróquias e soa a sinal de grito de alarme!
Mas, como lembra o Papa
Francisco, é necessário também um impulso de solidariedade que oriente uma
resposta mundial perante a anunciada quebra, senão queda, do nosso sistema
económico e social.
Ouçamos as interrogações
desafiantes do Papa Francisco: “Seremos capazes de atuar com responsabilidade
diante da fome que muitos sofrem, sabendo que temos alimentos para todos?
Continuaremos olhando para o outro lado com um silêncio cúmplice diante
daquelas guerras fomentadas por desejos de domínio e de poder? Estaremos dispostos
a mudar os estilos de vida que mergulham tantos na pobreza, promovendo e
animando-nos a levar uma vida mais sóbria e humana que possibilite uma divisão
equitativa dos recursos? Adotaremos como comunidade internacional as medidas
necessárias para deter a devastação do meio ambiente ou seguiremos negando a
evidência? A globalização da indiferença continuará a ameaçar e tentar o nosso
caminho… Esperemos que nos encontre com os anticorpos necessários da justiça,
da caridade e da solidariedade”.
Meus caros irmãos e
irmãs,
Todos estes aspetos
referidos fazem parte da nossa peregrinação interior, desta peregrinação
interior de 13 de maio de 2020, da conversão que Nossa Senhora de Fátima nos
pede hoje. E para terminar:
Querida Mãe, queremos
agradecer-te esta peregrinação interior, a luz, a esperança, a consolação e a
paz de Cristo que levas às nossas casas e aos nossos corações. Hoje fazes tu o
caminho da ida; o caminho da volta fá-lo-emos nós, quando superarmos esta ameaça
que no-lo impede. Voltaremos, sim, voltaremos! É a nossa confiança e nosso
compromisso, hoje. Voltaremos juntos aqui, em ação de graças, para te cantar:
“aqui vimos, mãe querida, consagrar-te o nosso amor”!
Santuário de Fátima, 13
de maio de 2020.
D. António Marto, bispo
de Leiria-Fátima
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