Entrevista ao Papa Francisco, publicada no jornal espanhol, El País, a 22 de janeiro de 2017 (síntese) O diálogo aproxima-nos e torna-nos mais irmãos por HUGO ANES

Papa FRANCISCO
Entrevista ao Papa Francisco, publicada no jornal espanhol, El País, a 22 de janeiro de 2017 (síntese)
 O diálogo aproxima-nos e torna-nos mais irmãos  por HUGO ANES

Ao longo de uma hora e 15 minutos, numa pequena sala da Casa de Santa Marta, onde vive Jorge Mario Bergoglio, nascido em Buenos Aires há 80 anos, e a cumprir o quarto ano do seu Pontificado, o Papa disse que “na Igreja há santos e pecadores, pessoas decentes e corruptas”, mas o que mais o preocupa é “uma Igreja anestesiada pela mundanidade", distante dos problemas das pessoas.
Fazendo uso do seu sentido de humor, o Papa Francisco demonstra estar atento não só ao que se passa no Vaticano, mas também na Igreja e no mundo. Diz que ainda que às vezes seja “provocador”, a sua única revolução é o Evangelho. O drama dos refugiados marcou-o —“aquele homem chorava com o salva-vidas na mão, e chorava no meu ombro porque não conseguiu salvar uma menina de quatro anos”— e a todos pede algo que parece fácil mas não o é: “Diálogo”.

El País: Depois de quase quatro anos no Vaticano, o que ainda existe do padre argentino que gostava de andar nas ruas e que chegou de Buenos Aires a Roma com um bilhete de ida e volta?
Papa Francisco. Continuo a gostar de andar nas ruas. Enquanto possa, saio à rua para saudar as pessoas nas audiências, ou nas viagens… A minha personalidade não mudou. Não há que mudar. Mudar aos 76 anos é maquilhar-se. É verdade que não posso fazer tudo o que quero, mas a alma que gosta de ir ao encontro das pessoas na rua está cá e vocês veem isso.

El País: Papa Francisco. Eu, como membro da hierarquia da El País. A hierarquia da Igreja está adormecida relativamente aos novos e velhos problemas das pessoas?
Papa Francisco. Igreja, ou falando em nome dos agentes pastorais da Igreja (bispos, padres, freiras, leigos…) receio mais pelos anestesiados do que pelos adormecidos. Os anestesiados pela mundanidade acabam por se deixar arrastar pela mundanidade. E isso preocupa-me. Quando está tudo bem, está tudo tranquilo, as coisas estão em ordem… é sinal de que algo está mal. Quando lemos os Atos dos Apóstolos ou as Cartas de São Paulo vemos que aí havia problemas e as pessoas mexiam-se. Havia movimento. E havia contato com as pessoas. O anestesiado não tem contato com as pessoas. Põe-se à defesa perante a realidade. Está anestesiado. E hoje em dia há tantas maneiras de ficarmos anestesiados na vida quotidiana! Talvez a doença mais perigosa que pode afetar um padre provém da anestesia, e é o clericalismo. Eu aqui e a gente além. Mas o padre é o pastor dessa gente! Se não cuidais dessa gente ou deixais de o fazer, fecha a porta e vai para a reforma!

El País. A Igreja está anestesiada?
Papa Francisco.  Todos temos perigos. É um perigo e uma séria tentação. É mais fácil estar anestesiado.

El País. Vive-se melhor, é mais cómodo?
Papa Francisco. Esta anestesia provém do espírito da mundanidade. Da mundanidade espiritual. Sobre isto, chama-me à atenção o que Jesus pede ao Pai na Última Ceia. Jesus nessa longa oração não diz: “Protege-os no quinto mandamento, que não matem. No sétimo mandamento, que não roubem. Não! Jesus diz: protege-os da mundanidade, protege-os do mundo. Porque o que anestesia o espírito é o mundo. E é anestesiado que o padre se converte num funcionário. E isso é o clericalismo, que no meu entender é o pior mal que existe, hoje, na Igreja.

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“A minha personalidade não mudou. Mudar aos 76 anos é maquilhar-se. Não posso fazer tudo o que quero, mas a alma de estar na rua com as pessoas continua viva e vocês veem-no.”

El País. Para os setores mais tradicionais da Igreja, qualquer mudança, ainda que seja só na linguagem, é uma traição. Para o outro extremo, inclusive, para os que nunca comungaram a fé católica, nada será suficiente. Segundo afirmou, tudo estava já escrito na essência do Cristianismo. Trata-se então de uma revolução da normalidade?
Papa Francisco. Eu procuro, mas não sei se consigo, fazer o que manda o Evangelho. Mas isso é o que procuro. Sou pecador e nem sempre consigo, mas isso é o que procuro fazer. É curioso: quem levou a historia da Igreja para a frente não foram os teólogos, nem os padres, nem as freiras, nem os bispos… sim, em parte foram, mas os verdadeiros protagonistas da história da Igreja são os santos. Ou seja, aqueles homens e mulheres que queimaram as suas vidas para que o Evangelho fosse concreto. E são eles que nos salvam: os santos. Às vezes, pensamos nos santos como uma freirinha que olha para o céu e fica deslumbrada. Mas os santos são os homens e mulheres concretos que vivem o Evangelho na vida diária! E a teologia que retiramos da vida dos santos é muito grande. É evidente que os teólogos e os padres são necessários. E são parte da Igreja. Mas o mais importante é o Evangelho. E quem são os melhores portadores do Evangelho? Os santos. Utilizou a palavra “revolução”. Os santos são a revolução! Eu não sou santo! Não estou a fazer nenhuma revolução. Estou simplesmente a fazer com que o Evangelho continue a caminhar em frente. Ainda que imperfeitamente, porque também cometo faltas.
 
El País. Há 50 anos realizou-se o Concílio Vaticano II e o abraço do Papa Paulo VI ao Patriarca Atenágoras, na Terra Santa. Há quem diga que para conhecer o Papa Francisco é recomendável conhecer antes Paulo VI, um Papa até certo ponto incompreendido. Também se sente assim, um Papa incómodo?
Papa Francisco. Não. Não. Acho que pelos meus pecados deveria ser mais incompreendido. O mártir da incompreensão foi Paulo VI. A exortação Apostólica ‘Evangelii Gaudium’, que é o marco pastoral que pretendo dar à Igreja hoje, é uma atualização da ‘Evangelii Nuntiandi’ de Paulo VI. O Papa Paulo VI foi um homem que se adiantou à história. E sofreu, sofreu muito. Foi um mártir. E sofria porque queria fazer muitas coisas, mas como era realista e sabia que não podia, e assim sofria, e oferecia esse sofrimento. Mas o que pode fazer, fê-lo. E o que fez de melhor Paulo VI? Semeou. Semeou coisas que depois a história colheu. A exortação apostólica ‘Evangelii Gaudium’ é uma simbiose da ‘Evangelii Nuntiandi’ e do documento de Aparecida. A exortação apostólica ‘Evangelii Nuntiandi’ é o melhor documento pastoral pós-conciliar e não perdeu a sua atualidade.
Eu não me sinto incompreendido. Sinto-me acompanhado, e acompanhado por todo o tipo de pessoas, jovens, velhos… Se alguém não concorda comigo, tem direito a isso, e se eu me sentisse mal porque alguém não concorda comigo haveria na minha atitude algo de ditador. Têm direito a não concordar comigo. Têm direito a pensar que o caminho é perigoso, que pode dar maus resultados, que… têm esse direito. Mas que o comuniquem, que dialoguem, e não que atirem a pedra e escondam a mão, isso não. Nenhuma pessoa tem direto a fazer isso. Atirar a pedra e esconder a mão é delinquência. Todos têm direito a discutir e oxalá discutíramos mais, porque isso aproxima-nos e torna-nos irmãos. A discussão torna-nos irmãos. A discussão com boa intenção, não com calúnias…

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“Uma Igreja que não é próxima não é Igreja. É uma ONG. No centro do sistema económico está o deus dinheiro e não o homem e a mulher”


El País. Também não se sente incómodo com o poder?
 Papa Francisco. Mas não sou eu que tem o poder. O poder é compartilhado. O poder é quando se tomam decisões pensadas, dialogadas, rezadas, a oração a mim ajuda-me muito e dá-me firmeza. A mim o poder não me incomoda.  Incomodam-me certos protocolos, mas isso é porque eu sou assim, um homem da rua.


El País. Na Europa como na América continuam a viver-se as consequências de uma crise que não acaba. O aumento das desigualdades e a ausência de lideranças sólidas estão a proporcionar o aparecimento de formações políticas que fazem da sua bandeira o mal-estar dos cidadãos. Algumas destas formações políticas – chamadas de antissistema ou populistas – aproveitam o medo da sociedade perante um futuro incerto, para construir uma mensagem xenófoba, de ódio ao estrangeiro. O caso de Trump é o mais conhecido, mas também há outros como na Áustria e Suíça. Este fenómeno preocupa-o?
Papa Francisco.  É aquilo a que chamam populismos. E esta palavra pode ser equivoca, porque na América o significado é outro. Significa que o protagonismo é dos povos, por exemplo, dos movimentos populares. Estabelece-se uma cooperação e ação conjunta. Mas quando ouvia a palavra «populismo» na Europa, não percebia o seu significado. E inteirei-me que tinha significados distintos, de acordo com os lugares. As crises, como é natural, provocam medos e apreensões. Um dos exemplos mais evidentes do populismo europeu foi o que aconteceu na Alemanha em 1933. Depois de [Paul von] Hindenburg, e a crise da década de 1930, a Alemanha destroçada, procura levantar-se, procura a sua identidade, procura um líder, alguém que lhe devolva a identidade. E há um rapazinho que se chamava Adolf Hitler e diz “eu posso, eu posso”. E toda a Alemanha vota em Hitler. Hitler não se apoderou o poder à força, foi eleito pelo seu povo, o qual depois acabou por destruir. Este é o perigo.
Nos momentos de crise, o discernimento não funciona e esta evidência é para mim uma referência contínua.  Procuramos um salvador que nos devolva a identidade e defendemo-nos com muros, com arame farpado, com o que seja, de outros povos que nos podem tirar a identidade. Isto é muito grave. O que eu procuro sempre dizer é: “Dialoguem, dialoguem uns com os outros”. O caso da Alemanha nazi é paradigmático, um povo em crise, que procurava a sua identidade e apareceu um líder carismático que prometeu dar-lhes uma identidade, mas era uma identidade distorcida e todos sabemos o que aconteceu. As fronteiras podem ser controladas? Sim, cada país tem o direito de controlar as suas fronteiras de modo a saber quem entra e quem sai. E em particular os países que correm maiores riscos do terrorismo têm direito a controlar as suas fronteiras. Mas, nenhum país tem o direito de privar os seus cidadãos do diálogo com os seus vizinhos.
El País. Um tema recorrente é o papel dos leigos e, sobretudo, das mulheres na Igreja. O seu desejo é que tenham maior influência e inclusive, decisão. É o seu desejo. Até onde acha que se pode chegar?
Papa Francisco. O papel da mulher não se encontra na funcionalidade, porque se é assim, acabamos por converter a mulher, ou o movimento da mulher na Igreja, num machismo com saias. Não. Esta reivindicação da mulher é muito mais do que funcional. O papel funcional já está bem. Por exemplo, a subdiretora da sala de imprensa do Vaticano é uma mulher, a diretora dos Museus do Vaticano é uma mulher… O papel funcional já está bem. O que a mim me interessa é que a mulher nos dê o seu pensamento, porque a Igreja é feminina, diz-se “a Igreja, não o”, e é “a” esposa de Jesus Cristo, e esse é o fundamento teologal da mulher. Quando me perguntam, “sim, mas a mulher podia ser mais…”. O que era mais importante no dia do Pentecostes, a Virgem ou o Apóstolos? A Virgem. Se atendermos só ao funcional podemos equivocar-nos a colocar a mulher no seu lugar. E há que dar-lhe lugar – sim, porque ainda falta muito – e trabalhar para que a mulher possa dar à Igreja a originalidade do seu ser e do seu pensamento.

El País. Em algumas das suas viagens dirigiu mensagens, tanto à cúria romana como às hierarquias locais, e inclusive padres e freiras, para lhes pedir mais compromisso, mas proximidade e também melhor humor. Como acha que recebem esses conselhos, esses carinhosos puxões de orelhas?
Papa Francisco.  O conselho em que mais insisto é a vizinhança e a proximidade. E este conselho é bem recebido, de uma maneira geral. Há sempre grupos um pouco mais fundamentalistas, em todos os países, na Argentina também. São pequenos grupos, aos quais respeito, são gente boa que prefere viver assim a sua religião. Eu proclamo aquilo que sinto que o Senhor me pede para proclamar.

El País. Na Europa vêem-se cada vez mais padres e freiras provenientes no chamado terceiro mundo. A que se deve este fenómeno?
Papa Francisco. Há 150 anos, na América Latina viam-se cada vez mais padres e freiras europeus, assim como em África ou na Ásia. Estas jovens igrejas foram crescendo. Hoje, na Europa não há natalidade. O índice de natalidade em Italia está abaixo de zero. A França é o país mais desenvolvido nas leis de apoio à natalidade, mas também aí não há natalidade. O estilo de vida do bem-estar italiano de há uns anos para cá fez diminuir a natalidade. Hoje em dia preferimos ir de férias, ter um cãozinho, um gatinho… E se não há natalidade, também não há vocações.

El País. Nos seus consistórios criou novos cardeais oriundos dos cinco continentes. Como gostaria que fosse o conclave que irá eleger o seu sucessor? E acha que verá o próximo conclave?
Papa Francisco.  Que seja católico. Que seja um conclave católico que eleja o meu sucessor.

El País. E vê-lo-á?
Papa Francisco. Isso não sei. Que seja Deus a decidir. Quando sinta que já não posso mais, o meu grande mestre Bento XVI já me ensinou o que devo fazer. E se Deus me levar antes, verei o conclave do outro lado. Não do Inferno, espero … E que seja um conclave católico.

El País. Vê-se que gosta de ser Papa.

Papa Francisco. O Senhor é bom e não me retirou o bom humor.

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