DESPOJADOS idosos e jovens
DESPOJADOS idosos e jovens
Papa Francisco: assim eu vivo a emergência pandemia (Entrevista)
Como
o Papa está vivendo a crise causada pelo Covid-19? E como se preparar para o
pós-emergência? Entrevista com o Papa Francisco realizada pelo jornalista
inglês Austen Ivereig
VATICAN NEWS 08.04.2020
Como o Papa Francisco está
vivendo a crise causada pelo Covid-19? E como se preparar para viver depois?
Francisco respondeu às perguntas do jornalista e escritor britânico Austen
Ivereig.
Na primeira pergunta o
jornalista pede ao Papa como ele vive a pandemia e o isolamento.
“A Cúria – explicou Francisco
– busca trabalhar em continuação, viver normalmente, organizando-se em turnos
para que nunca tenha muitas pessoas juntas. Muito bem pensado. Mantemos as
medidas estabelecidas pelas autoridades sanitárias. Aqui na Casa Santa Marta
temos dois horários para o almoço, para atenuar o afluxo dos residentes. Cada
um trabalha no seu escritório ou em casa com instrumentos digitais. Todos
trabalham, ninguém fica no ócio”.
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“Como eu vivo espiritualmente?
Rezo mais ainda, porque acredito que devo fazer assim, e penso nas pessoas.
Preocupa-me isso: as pessoas. Pensar nas pessoas me ajuda, me faz bem, me
subtrai ao egoísmo. Obviamente tenho meus egoísmos: na terça-feira recebo meu
confessor, é então que coloco no lugar este tipo de coisa. Penso nas minhas
responsabilidades atuais e no que acontecerá depois. Qual será, nesse depois, o
meu serviço como bispo de Roma, como chefe da Igreja? Aquele depois já começou
a se mostrar trágico, doloroso, por isso convém começar a pensar desde agora.
Com o dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral organizamos uma
comissão que trabalha sobre este tema e se reúne aqui comigo”.
“A minha maior preocupação –
ao menos a que sinto na oração – é como acompanhar o povo de Deus e estar mais
próximo dele. Este é o significado da Missa das sete da manhã ao vivo em
streaming, seguida por muitas pessoas que se sentem acompanhadas, assim como de
algumas minhas intervenções e do rito de 27 de março na Praça São Pedro. Também
de um trabalho bastante intenso de presença, por meio da Esmolaria Apostólica,
para acompanhar as situações de fome e de doenças. Estou vivendo este momento
com muita incerteza. É um momento de muita inventiva, de criatividade”.
Na segunda pergunta Austen
Ivereigt fala sobre a obra literária “Os Noivos” de Alessandro Manzoni,
ambientado no tempo da peste de 1630 em Milão. O livro descreve o comportamento
de vários eclesiásticos. E perguntou como o Papa vê a missão da Igreja neste momento.
“O cardeal Federico – responde
Francisco – é um verdadeiro herói da peste em Milão. Todavia, há um capítulo
que diz que passava saudando as pessoas, porém fechado em uma liteira, talvez
por trás da janelinha, para se proteger. O povo não gostou daquilo. O povo de
Deus precisa do pastor ao seu lado, que não se proteja demais. Hoje o povo de
Deus precisa do pastor muito próximo de si, com a abnegação daqueles
capuchinhos, que faziam assim”.
“A criatividade do cristão
deve se manifestar em abrir novos horizontes, abrir novas janelas, abrir
transcendência para com Deus e os homens, e deve se redimensionar em casa. Não
é fácil ficar fechado em casa. Recordo-me de um verso da “Eneida” que, no
contexto de uma derrota, dá o conselho de não desistir. Preparem-se para tempos
melhores, porque naquele momento isso nos ajudará a recordar as coisas que
aconteceram agora. Cuidem-se bem para um futuro que virá. E quando este futuro
chegar, fará muito bem recordar o que aconteceu agora”.
“Cuidar do agora, mas para o amanhã.
Tudo isso com criatividade. Uma criatividade simples, que todos os dias inventa
alguma coisa. Em família não é fácil descobri-la. Mas não se pode fugir, buscar
evasões alienantes, que neste momento não são úteis”.
A terceira pergunta
refere-se às políticas dos Governos em resposta à crise.
“Alguns governos – disse o
Papa – tomaram medidas exemplares, com prioridades bem definidas, para defender
a população. Mas estamos nos dando conta de que todas as nossas preocupações,
queira ou não, estão ligadas à economia. Dir-se-ia que no mundo financeiro
sacrificar seja uma coisa normal. Uma política da cultura do descarte. Do
início ao fim. Penso, por exemplo, à seletividade pré-natal. Hoje é muito
difícil encontrar pela rua pessoas com a síndrome de Down. Quando são
detectados nos exames de ultrassom, são renegados. Uma cultura da eutanásia,
legalizada ou oculta, na qual são dados remédios ao idoso até um certo ponto.
Recordo-me da encíclica do
Papa Paulo VI, a Humanae vitae. A grande problemática da época
que os pastoralistas se concentravam era a pílula. E não se deram
conta da força profética daquela encíclica que antecipava o neomalthusianismo
que estava sendo preparando em todo o mundo. É uma advertência de Paulo VI
sobre a onda de neomalthusianismo que hoje vemos na seleção das pessoas segundo
a possibilidade de produzir, de ser útil: a cultura do descarte”.
“Os sem-teto, continuam
sem-teto. Alguns dias atrás vimos uma fotografia de Las Vegas, na qual eles
tinham sido colocados em quarentena em um estacionamento aberto. E os hotéis
estavam vazios. Mas um sem-teto não pode ir a um hotel. Aqui pode-se ver a
prática da teoria do descarte”.
Na pergunta seguinte
Ivereigh pergunta se o impacto da crise pode levar a uma revisão do nosso modo
de viver, a uma conversão ecológica e a uma sociedade e economia mais humanas.
“Há um provérbio espanhol que
diz: “Deus perdoa sempre, nós, algumas vezes, a natureza nunca”. Não demos
ouvido às catástrofes parciais. Quem é que fala dos incêndios na Austrália? E
do fato que um ano e meio atrás um navio atravessou o Polo Norte, que tinha se
tornado navegável por causa do derretimento das geleiras? Quem fala das
inundações? Não sei se é uma vingança da natureza, mas certamente é a sua
resposta.
“Temos uma memória seletiva.
Gostaria de insistir nisso. Impressionou-me a celebração do 70º aniversário do
desembarque na Normandia. Com a presença de personagens da política e da
cultura internacional. E festejavam. Certamente foi o início do fim da
ditadura, mas ninguém recordava dos 10 mil jovens que morreram naquela praia”.
Quando fui à cidade de
Redipuglia, no centenário do fim da I Guerra Mundial, via-se um belo monumento
e nomes gravados em uma pedra, e nada mais. Pensei em Bento XV (ao “inútil
massacre”), o mesmo ocorreu em Anzio, no dia de finados, pensando em todos os
soldados norte-americanos sepultados ali. Cada um tinha uma família”.
“Hoje, na Europa, quando se
começam a ouvir discursos populistas ou decisões políticas de tipo seletivo não
é difícil recordar dos discursos de Hitler em 1933, mais ou menos os mesmos que
alguns políticos fazem hoje.
Recorda-me um verso de
Virgílio: Meminisce iuvabit. Fará bem recuperar a memória, porque a
memória nos ajudará. Hoje é tempo de recuperar a memória. Não é a primeira
pestilência da humanidade. As outras já se reduziram a casos sem importância.
Devemos recuperar a memória das raízes, da tradição, que é “memoriosa”. Nos
Exercícios de Santo Inácio, toda a primeira semana e a contemplação para
alcançar o amor na quarta semana, seguem inteiramente o sinal da memória. É uma
conversão com a memória”.
“Esta crise nos toca a todos:
ricos e pobres. É um apelo à atenção contra a hipocrisia. Preocupa-me a
hipocrisia de alguns políticos que dizem que querem enfrentar a crise, que
falam da fome no mundo, enquanto fabricam armas. É o momento de nos
convertermos desta hipocrisia em ação. Este é um tempo de coerência. Ou sejamos
coerentes ou perdemos tudo”.
“O senhor pergunta-me sobre a
conversão. Toda a crise é um perigo, mas também uma oportunidade. E é a oportunidade
de sair do perigo. Hoje acreditamos que devemos diminuir o ritmo de consumo e
de produção (Laudato si’, 191) e aprender a compreender e a contemplar a
natureza. Também, a entrar novamente em contato com o nosso ambiente real. Esta
é uma oportunidade de conversão”.
“Sim, vejo sinais iniciais de
conversão a uma economia menos líquida, mais humana. Mas não devemos perder a
memória depois que passar a situação presente, não devemos arquivá-la e voltar
ao ponto anterior. É o momento de dar o passo. De passar do uso e abuso da
natureza à contemplação. Nós homens perdemos a dimensão da contemplação, chegou
a hora de recuperá-la”.
Devemos, disse ainda Francisco
citando o célebre romance de Dostoievski, “descer no subsolo, e passar da
sociedade hipervirtualiada, desencarnada, à carne sofredora do povo, é uma
conversão obrigatória. Se não começarmos por ali, a conversão não terá futuro.
Penso nos santos do dia a dia nestes momentos difíceis. São heróis! Médicos,
voluntários, religiosas, sacerdotes, profissionais da saúde que fazem seu
serviço para que esta sociedade funcione”.
A propósito da Igreja do
pós-crise Francisco disse: “Algumas semanas atrás me telefonou um bispo
italiano. Aflito, dizia-me que ia de um hospital a outro para dar a absolvição
a todos os que estavam internados, ficando na entrada do hospital. Mas que
alguns canonistas tinham chamado sua atenção dizendo que não podia fazer assim,
a absolvição é permitida apenas com um contato direto. “Padre, o que o senhor
pode me dizer?”, perguntou-me o bispo. Disse-lhe: “O senhor faça o seu dever
sacerdotal”. E o bispo me respondeu: “Obrigado, entendi”. Depois soube que dava
absolvições em vários lugares”.
“Em outras palavras, neste
momento, diante de uma crise a Igreja é a liberdade do Espírito, e não uma
Igreja fechada nas instituições… O último cânon diz que todo o Direito canônico
tem sentido para a salvação das almas, e é aqui que nos é aberta a porta para
levarmos a consolação de Deus nos momentos de dificuldade”.
Por fim o Papa observou que
“as pessoas que ficaram pobres por causa da crise são os despojados de hoje que
se somam aos despojados de sempre, homens e mulheres que carregam “despojado”
como estado civil. Perderam tudo ou estão perdendo tudo. Qual é sentido para
mim, hoje, perder tudo à luz do Evangelho? Entrar no mundo dos “despojados”,
entender que os que antes tinham agora não têm mais. O que peço às pessoas é
para que cuidem dos idosos e dos jovens. Cuidem da história. Cuidem destes
despojados”.
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